Com O Continente, Erico Verissimo não apenas forjou uma das obras definitivas sobre o passado do Rio Grande do Sul, mas forjou também um novo caminho como escritor. Cada livro da trilogia parece ter precisado de um Erico diferente, com linhas de comunicação diversas com o "computador" cerebral que o autor descrevia como responsável por armazenar cenas, personagens, situações, cores, sons, cenários para recuperá-los mais tarde enquanto o autor elaborava suas ficções. No primeiro volume da saga O Tempo e o Vento, Erico foi buscar dentro de seu "processador" os aplicativos necessários para dar ares épicos ao romance histórico.
>>> Livro a livro: O Arquipélago
>>> Livro a livro: O Retrato
Autor de romances urbanos profundamente humanistas, Erico já havia se lançado ao relato de ação de fôlego aventuresco com Saga, parte do qual narra a luta de Vasco Bruno como voluntário nas Brigadas Internacionais durante a Guerra Civil Espanhola, contra a tirania de Francisco Franco. Para O Continente, Erico deixaria de lado a contraposição entre a mentalidade de cidade pequena de seus personagens e o gigantismo exacerbado de uma Porto Alegre descrita como uma metrópole que ela ainda não era. Ele empreenderia um mergulho no passado do Estado para sair de lá com um objeto raro na literatura nacional: um romance monumental que é também contínuo sucesso de público.
Assista ao webdocumentário sobre o cinquentenário da obra:
"Livro de uma vida inteira _ ocupou pelo menos 27 anos de suas preocupações _, O Tempo e o Vento é a única obra de ficção nacional a se propor, e conseguir, uma reflexão totalizante sobre a formação do país, o conceito de nação, a autoconsciência de um povo, suas responsabilidades, seus deveres etc. E, o que dá a dimensão do artista: tudo isso a partir de um olhar que se quer focalizado no 'regional'" _ escreveria sobre a saga o autor Luiz Ruffato, autor de Eles Eram Muitos Cavalos e um dos prefaciadores da edição mais recente da obra, pela Companhia das Letras.
A professora da UFRGS Maria da Glória Bordini, organizadora do Acervo Literário Erico Verissimo, relata em A Criação Literária em Erico Verissimo que o nascimento de O Continente remonta a 1939. Na época, quando Verissimo planejava a escritura de Saga, o painel histórico tinha ainda outro nome e concepção. "Numa conferência, ele revela que se encontra em Canela, 'com firme intenção de começar a escrever um massudo romance cíclico que teria o nome de Caravana. Seria um trabalho repousado, lento e denso a abranger duzentos anos da vida do Rio Grande. Começaria numa missão jesuítica em 1740 e terminaria em 1940'", escreve Bordini, citando o original da conferência de Erico.
Erico ainda demoraria a levar o projeto adiante, por não acreditar que a interiorização e o retorno ao passado remoto fossem o melhor caminho para sua ficção em um período em que a II Guerra ainda suspendia a respiração do mundo. Na concepção original, O Tempo e o Vento seria, de fato, "massudo": o planejamento de Erico para obra previa contar toda a história em um único "romanção" de 800 a mil páginas. As anotações para o plano geral da obra desenvolviam personagens mais tarde modificados drasticamente ou até mesmo descolados da saga e aproveitados em outros livros, como foi o caso do escritor Tônio Santiago.
A princípio, as duas famílias centrais da narrativa planejada por Erico seriam os Terra e os Santiago, Tônio aparecendo como um protótipo do que na obra definitiva seria Floriano Cambará, o escritor deslocado na família caudilhesca. Tônio acabaria ganhando corpo como personagem de O Resto é Silêncio, e, embora muito do que se viu em O Continente já estivesse esboçado nos capítulos imaginados na estrutura planejada da obra, o projeto ampliou-se a tal ponto que seu resultado final foram os dois tomos cada para O Continente e O Retrato e os três volumes de O Arquipélago, perfazendo aproximadamente 2,2 mil páginas. O projeto original, contudo, já tinha um capítulo intitulado A Fonte _ no romance publicado, o que enfoca as missões guaraníticas no século 18. As menções mais antigas ao projeto também já mencionam A Teiniaguá _ assim mesmo, no masculino, bem como uma personagem "Luzia" _ que mutariam até se referirem à cruel e desequilibrada mulher de Bolívar Cambará.
Para ambientar o livro no passado distante, Erico realizou leituras, pesquisas e consultas que, infelizmente, ele próprio admitiria mais tarde, não registrou com minúcias. Para criar Santa Fé e seus personagens carismáticos _ O Continente é a parte mais popular e com os personagens mais conhecidos do conjunto _, Erico não teve apenas que pesquisar o passado, mas apreendê-lo. Prova disso são as correções que fez na primeira edição de O Continente. A famosa frase que abre o livro _ e que mais de uma década depois encerraria O Arquipélago _ empregava textualmente "Era uma noite fria de lua nova". Como o desenrolar da narrativa mostrava o Sobrado acossado por inimigos entocados na torre de igreja, em condições de abater qualquer partidário de Licurgo que se arriscasse a deixar o abrigo do Sobrado, Erico em edições posteriores alterou a obra, situando a cena inicial em uma mais luminosa "noite de lua cheia". O próprio título do ciclo foi decidido nas últimas revisões de O Continente: até o último momento, Erico hesitou entre O Tempo e o Vento e a forma inversa O Vento e o Tempo.
Momentos históricos na obra:
Reduções Jesuíticas
A Fonte, narrativa centrada na infância de Pedro Missioneiro, é ambientada em uma das reduções dos jesuítas no Estado. As missões jesuíticas eram povoações de indígenas convertidos aos catolicismo administradas por religiosos da Companhia de Jesus. Os povoamentos eram um modo de os jesuítas estabelecerem núcleos eficientes de evangelização em comunidades supervisionadas pela ordem desde a origem. Nas missões, os índios aprendiam o Evangelho e viviam à semelhança das ordens monásticas. No Estado, as missões deram origem a "sete povos": São Francisco de Borja, São Luiz Gonzaga, São Nicolau, São Lourenço Mártir, São Miguel Arcanjo (E), São João Batista e Santo Ângelo Custódio.
Pinto Bandeira
O rancho isolado em que Ana Terra vive é visitado, na primeira metade da década de 1870, pelas forças de Rafael Pinto Bandeira (1740 _ 1795) (E), um dos primeiros caudilhos gaúchos com existência documentada. Natural de Rio Grande, envolveu-se em lutas contra os espanhóis desde a adolescência, quando incorporou-se ao Regimento de Dragões de Rio Pardo. Participou de praticamente todas as guerras entre lusos e castelhanos na fase inicial de delimitação das fronteiras do Brasil.
São João da Cruz
Padre Alonzo, o tutor de Pedro Missioneiro, é mostrado em mais de uma cena lendo e refletindo sobre os poemas de San Juan de La Cruz (1542 _ 1591), religioso e poeta do Século de Ouro espanhol. Nascido Juan de Yepes Álvarez, foi amigo e interlocutor de Teresa de Jesus, com quem fundou a Ordem das Carmelitas Descalças. Juan de la Cruz é um poeta cujos principais temas são o encontro com a divindade por meio da purificação da alma e a alegria espirtual do encontro com Deus no outro mundo.
Guerra dos Farrapos
O Capitão Rodrigo Cambará morre logo no começo do mais longo conflito armado do Rio Grande. Rodrigo apresenta-se às forças de Bento Gonçalves, a quem admira e com quem já servira. A Revolução Farroupilha, também chamada de Guerra dos Farrapos, opôs soldados leais ao governo imperial brasileiro de Dom Pedro II (os caramurus) e os partidários de um movimento revolucionário republicano, os farrapos, chefiados por Bento.
Imperador Maximiliano
Em A Teiniaguá, Luzia, a viúva de Bolívar, menciona sua admiração pelo Imperador Maximiliano, do México. Fernando Maximiliano José de Habsburgo-Lorena (1832 _ 1867) foi um nobre austríaco (e primo de Dom Pedro II) que renunciou a seus títulos para, em nome de Napoleão III, sobrinho de Napoleão Bonaparte, assumir o título de Imperador do México depois que os exércitos franceses invadiram o país americano e destituíram o presidente Benito Juárez. A aventura francesa no México durou três anos e terminou, tragicamente, com a morte por fuzilamento do pretenso imperador.
Zurbarán
Erico sempre teve uma imaginação pictórica. Em mais de um trecho de O Tempo e o Vento, ele compara as feições de seus personagens a rostos de retratos e pinturas. Padre Alonzo, o padrinho de Pedro Missioneiro em A Fonte, é descrito a certo momento como um homem com "o rosto dramático de um monge pintado por Zurbarán". A referência é a um dos grandes pintores maneiristas espanhóis, Francisco de Zurbarán (1598 _ 1664), famoso pela dramaticidade com que imprimia, com o uso de densas sombras, em suas pinturas sacras, com destaque para vários retratos de diferentes momentos da vida de São Francisco de Assis.
A questão Zacarias
Em um serão promovido por Luzia no Sobrado, os convidados discutem, para fastio da anfitriã, a "questão Zacarias". Uma referência à queda, em 1868, do gabinete de ministros chefiado por Zacarias de Góes e Vasconcelos (E), na sequência de desentendimentos entre este e o comandante militar do Brasil da Guerra do Paraguai, Luís Alves de Lima e Silva, o Marquês (mais tarde Duque) de Caxias. Com a queda de Zacarias, criou-se uma divergência entre os dois partidos da vida política brasileira, liberais e conservadores.