Era 3 de maio e a chuva caía forte quando o ator Edgar Alves, 57 anos, recebeu uma ligação avisando que o neto estava prestes a vir ao mundo. Apesar do aguaceiro, Alves saiu do bairro Fátima, em Canoas, e rumou ao Hospital Conceição, em Porto Alegre, para dar as boas-vindas ao pequeno Cícero. Enquanto celebrava a chegada do mais novo integrante da família, a água lamacenta tomou conta de sua residência. Foram semanas preso em Porto Alegre, impedido de voltar para Canoas, vendo a inundação avançar sobre sua vida. Artista de rua no Grupo TIA — Teatro, Ideia & Ação, Alves foi impactado de diferentes formas pela enchente histórica de maio: ficou sem casa para morar, sem rua para se apresentar e, consequentemente, sem sua principal fonte de renda.
— A gente vê as pessoas desoladas e sente vontade de levar um pouco de conforto, algo que, por um breve momento, torne tudo mais lúdico, mas não estamos conseguindo. As ruas de Canoas seguem tomadas de lixo, o cenário é insalubre. Quando a gente olha para as pessoas que perderam tudo, lembra que também perdeu tudo. Mais do que nunca, plateia e artistas estão no mesmo lugar — diz o ator, que completa 30 anos de teatro de rua em 2025.
Profissionais que têm o espaço público como palco, os artistas de rua foram afetados direta ou indiretamente pela tragédia climática. Mesmo quem não teve a residência tocada pela água sofreu prejuízos com a impossibilidade de ir para a rua buscar o apoio das plateias itinerantes. Foi o caso do palhaço André Tuiga, 38 anos, morador de Porto Alegre. Ele havia acabado de estrear seu novo espetáculo, Tuiga Vida Loka!, apresentado pela primeira vez no Parque da Redenção, quando toda a agenda planejada precisou ser suspensa. A enchente também afetou a continuidade de outro projeto do artista, o Circo Fusca, por meio do qual, a bordo do veículo clássico, Tuiga leva a arte circense até regiões periféricas da Capital.
Sem poder se apresentar na rua, o artista uniu-se a outros companheiros de arte para levar espetáculos a abrigos. O projeto Abraço iniciou de forma voluntária, mas passou a receber doações de apoiadores e foi contratado pelo Sesc para realizar algumas apresentações, o que garantiu renda para Tuiga e os demais integrantes durante o período da enchente.
— Foi uma porta que se abriu na hora certa. Não fui afetado diretamente, mas precisei sair de casa por alguns dias, pois moro em área com risco de deslizamento e perdi trabalhos. Então, foi muito importante termos conseguido rentabilizar esse projeto. E poder estar nos abrigos, fazendo o dia das pessoas ser um pouquinho melhor, foi gratificante — afirma Tuiga.
Em Canoas, Edgar Alves e outros membros do Grupo TIA também viram nas apresentações em abrigos uma alternativa para sobreviver à crise. Contratados pelo Sesc, eles realizaram espetáculos em diferentes espaços de acolhimento. Contaram, ainda, com a ajuda de uma campanha solidária idealizada pelo grupo De Pernas pro Ar, também de teatro de rua, além de doações feitas por amigos e apoiadores.
Entretanto, para os próximos meses, o cenário é de incerteza. Alves está abrigado na casa da irmã, em um bairro de Canoas que não foi atingido pela água, e ainda não sabe de onde tirar recursos para recuperar os móveis perdidos na enchente e a própria residência, cuja rua permanece tomada pelo entulho. Marcelo Militão, diretor do Grupo TIA, também teme pela continuidade das atividades da companhia. Segundo ele, a agenda de atividades do segundo semestre foi comprometida quase totalmente — incluindo o tradicional FESTIA, festival internacional organizado anualmente pelo grupo, que tem sua 13ª edição ameaçada pela falta de apoiadores.
— Estamos completando 20 anos de Grupo TIA em 2024. Com muita batalha, conseguimos planejar uma série de atividades para o ano, mas tudo foi interrompido de forma abrupta. É frustrante e assustador não saber o que esperar dos próximos meses, porque nós vivemos exclusivamente da arte — diz o diretor.
Também morador de Canoas, Militão não teve o apartamento onde vive, no terceiro andar, invadido pela água, mas precisou ser resgatado em meio à inundação que tomava conta da rua e dos andares inferiores do prédio. Ele ficou cerca de um mês vivendo em um abrigo com a família. De volta à sua residência, passado o período mais crítico, o diretor do Grupo TIA batalha para viabilizar a retomada das atividades (e da renda) da companhia.
— Estamos abertos ao diálogo com prefeituras e instituições que queiram viabilizar algum projeto. O cenário nas cidades atingidas é de pós-guerra, e o teatro de rua poderia ajudar a mudar esse panorama, trazer um pouco de alegria aos espaços que foram marcados pela tragédia. É muito fácil dizer que a arte não é prioridade, mas os artistas são trabalhadores que também precisam de ajuda. E as pessoas, mais do que nunca, estão precisando da arte.