Um clima de festa e, ao mesmo tempo, de angústia marcou as duas sessões da remontagem de O Rei da Vela que Zé Celso apresentou em outubro de 2018 no Teatro do Sesi, como um epílogo do festival Porto Alegre em Cena. Festa porque fazia 10 anos que o encenador mais libertário que o teatro brasileiro já viu não trazia um trabalho à Capital — o último havia sido a ópera Os Bandidos, em 2008, na Usina do Gasômetro. Angústia porque o Brasil vivia a campanha presidencial mais polarizada de sua história recente, entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad. E é simplesmente impossível separar a atuação de Zé Celso – morto nesta quinta-feira (6), aos 86 anos — e de seu Teatro Oficina da política.
Apresentada pela primeira vez em 1967, a partir do texto de Oswald de Andrade de 1933, O Rei da Vela vinha, em sua nova versão, com citações aos tempos atuais que explicitavam a já natural perenidade do espetáculo. Foi um acontecimento. Por trás da exuberância da cena, havia um medo pelo futuro do Brasil e de sua cultura, que vinha sofrendo ataques. Por isso, o encontro informal que Zé Celso realizou com o público no Teatro Renascença na quarta-feira que antecedeu a estreia do espetáculo teve uma atmosfera de catarse. O diretor palestrou e cantou com o público, que foi convidado a sentar no chão do palco ao seu redor.
— Temos que fazer brotar a primavera brasileira! — conclamou.
Dias depois, tive a oportunidade de entrevistá-lo no camarim do Teatro do Sesi, durante os preparativos para a primeira sessão de O Rei da Vela. O clima político, como era de se esperar, deu o tom da conversa. Zé Celso disse que achava a neutralidade "um absurdo" naquele momento. Perguntei se ele, que foi perseguido pela ditadura militar, via a história se repetindo.
— Está se repetindo de maneira pior — respondeu. — Porque houve um avanço. Houve ascensão social, liberdade de arte, liberdade de costumes, de sexualidades, de ser o que se quer. Desencadeou essa onda sobretudo de defesa da tradição, família, propriedade e Deus, como diz a personagem que eu faço (na peça). Houve um avanço, várias primaveras. E essa primavera das pessoas que não estão querendo o retorno à ditadura, ao fascismo, é muito forte também.
Décadas antes, em 1968, durante a ditadura militar, Porto Alegre havia ficado marcada em sua trajetória devido ao terror que dominou a passagem da peça Roda Viva, de Chico Buarque. O episódio é contado no livro 1968 — O Ano que Não Terminou (1989), de Zuenir Ventura. Após a primeira sessão no Teatro Leopoldina — que veio a ser a única, pois a temporada foi interrompida —, a atriz Elizabeth Gasper e o músico Zelão foram sequestrados, intimidados violentamente e liberados com a ordem de deixar a cidade. Na manhã seguinte, o teatro estava pichado com frases como "Abaixo a pornografia" e "Comunistas". Logo a peça foi censurada.
O diretor, no entanto, foi muitas vezes feliz na Capital. Os gaúchos ainda se lembram de espetáculos como Cacilda!, em 1999; Boca de Ouro, no ano seguinte; e o já mencionado Os Bandidos, em 2008. Zé Celso foi, ele mesmo, uma primavera que coloriu a cultura brasileira por mais de seis décadas, como uma Tropicália sem fim. De poucos encenadores se pode dizer que o teatro foi um antes e outro depois.