Os personagens não são heróis e as suas narrativas não ocorrem nos cenários idílicos da Grécia Antiga, mas Trago Sorte Mentira & Morte, o novo espetáculo teatral do Grupo Cerco, guarda semelhanças com a mitologia grega, romana e egípcia na medida em que conduz um grupo de malandros e trapaceiros por uma jornada no mundo dos mortos.
— Quis fazer uma versão moderna dessa coisa de visitar o mundo dos mortos, se encontrar e se reconstruir através disso. Só que isso ocorre em um bar decadente, repleto de pessoas cheias de defeitos e qualidades. Através das aventuras que vivem, os personagens se encontram com suas próprias sombras e com o diabo — afirma o dramaturgo e multiartista Celso Zanini, que escreveu a peça.
Ao invés do palco dos teatros, o bar Agulha (Rua Conselheiro Camargo, 300), no 4º Distrito de Porto Alegre, foi o ambiente escolhido para o espetáculo, que tem curta temporada desta terça (29/3) até sexta (1º/4), sempre às 20h30min (o bar abre às 18h30min). A peça, que marca o reencontro do grupo com o público presencial após dois anos de hiato, devido à pandemia, está com ingressos esgotados — novas sessões para o primeiro semestre devem ser anunciadas em breve.
Quem for conferir Trago Sorte Mentira & Morte vai deparar com uma opereta-rock, já que a história é totalmente conduzida por inserções musicais de jazz, rock e blues: serão 12 canções executadas ao vivo pela banda de Frigo Mansan, Gabriela Lery e R. Fernandez, e cantadas pelos demais atores. Sob direção cênica de Inês Marocco e Kalisy Cabeda e direção musical de Simone Rasslan, a peça não abre mão da criação colaborativa característica do grupo teatral.
— O texto é muito baseado na commedia dell'arte, estilo que teve seu auge nos séculos 15 e 16. Tem tipos como a Colombina e o Arlequim, geralmente é improvisacional e faz críticas à sociedade de forma cômica. Fizemos toda uma preparação nesse estilo antes de começar a ensaiar. E o espetáculo foi criado de forma coletiva: todo mundo cria, dirige, atua e dá pitaco — afirma Inês.
Momento
O grupo conta que foi recebido de braços abertos ao apresentar a proposta ao Agulha, que vai disponibilizar seu palco e outros ambientes, como os corredores e o bar, para a encenação. Zanini lembra que o cenário escolhido faz ainda mais sentido, pois boa parte do espetáculo foi concebida numa mesa de bar — neste caso, o bar Eclipse, hoje fora de funcionamento na Capital — há cerca de 10 anos. Tanto o proprietário como Zanini integravam uma banda que ensaiava ali. Foram os membros do conjunto e aquele ambiente boêmio que inspiraram a composição das primeiras linhas e canções de Trago Sorte Mentira & Morte.
— Ele foi encubado num bar, cresceu num bar e vai ser apresentado num bar. Mesmo que a peça vá para os teatros futuramente, apresentá-la primeiro nesse ambiente diz muito a respeito da atmosfera desse espetáculo, até porque, de certa forma, o próprio bar é um personagem da história.
A peça foi criada em 2010 e apresentada pelo Grupo Cerco como parte do trabalho de conclusão de Zanini no curso de Teatro da UFRGS, mas restava uma vontade de readaptá-la e trazê-la ao público amplo. Doze anos depois, a trama chega aos porto-alegrenses por meio do edital Serafim Bemol, da Secretaria Estadual da Cultura. O elenco é composto por Anildo Böes, Bruno Fernandes, Camila Falcão, Elisa Heidrich, Manoela Wunderlich, Martina Fröhlich e Philipe Philippsen.
Para as próximas temporadas, a expectativa dos criadores é de que a peça seja levada para outros teatros e refúgios boêmios.
— Apesar dos horrores que vivemos nos últimos anos, me parece que esse momento é ideal para o Trago vir à luz. Sinto que pelas experiências que tivemos como humanidade, os assuntos tratados no espetáculo se tornaram mais relevantes. E ver um grupo que eu amo tanto e do qual fui um dos fundadores montar a peça é incrível. Os personagens, a história e o universo já têm vida própria, e eu, agora, sou só um espectador — conclui Zanini.