* Everton Cardoso, jornalista e crítico
Quando as cortinas do Teatro do Sesi se fecharam na noite da última sexta-feira (18), a Companhia de Dança Deborah Colker nos havia deixado, sem dúvida, com o que mais precisávamos neste momento em que parecemos estar saindo da pandemia, este período difícil e doloroso para nós, indivíduos, e para a humanidade. Ficou uma sensação de alento e esperança de que sempre é possível viver apesar do sofrimento que a doença pode nos causar. No entanto, se muitas vezes o avanço científico e as possibilidades que ele nos abre nos fazem pensar que viver se resume a lutar contra o adoecimento, o espetáculo Cura nos toma pela mão e nos guia por outras formas de encarar essas questões.
Ora, quem não esteve amedrontado ou não se sentiu acuado diante da ameaça da recente pandemia? Se bem era fundamental que nos cuidássemos ao extremo em muitos momentos, agora o tempo é de aprendermos a conviver com essa experiência de modo mais tranquilo. E é exatamente aí que surge a potência do espetáculo e que remete a duplas opostas de ideias: doença e saúde, adoecimento e cura, bem e mal-estar.
Se tomadas as cenas de abertura e encerramento da performance, há nelas um caminho para pensarmos sobre a relação com nossos corpos. No princípio, um bailarino solitário executa uma coreografia com um tecido que lembra uma atadura de grande proporção. Para além do aspecto físico que envolve um problema de saúde, ali está uma leitura metafórica do que é adoecer. Por mais que estejamos cercados de gente, há sempre uma dimensão individual, solitária, um labirinto de sensações que nos levam a repensar uma fórmula simplista muitas vezes aplicada para tentar racionalizar esses momentos: sintoma, diagnóstico, remédio e cura. Somos natureza, como nos ensina a sabedoria indígena, e por isso nossa existência é complexa e imprevisível e nos exige humildade diante do inesperado, ainda que isso não queira dizer conformismo.
Se ligada com a cena final da noite, esse primeiro solo nos oferece uma leitura bastante interessante. Ao final, o grupo está todo em cena. No palco, cubos de tecido formam colunas por entre as quais os bailarinos se movem sem parar e com gestos vivos. Cantam e dançam, acompanhando a trilha sonora. No figurino, ponchos em tom dourado e feitos de tecido leve, acetinado e esvoaçante se movem, reluzindo. De repente, as cortinas se fecham, mas reabrem para que vejamos o grupo todo enfileirado, cantando e batendo palmas, como que convidando o público a celebrar.
Na imagem dessa alegria, muito do que somos enquanto brasileiros, que temos no festejo esse lugar de respiro para esquecer de nossas angústias e sofrimentos, mas que também vemos nele uma forma de ressignificar nossa existência. Afinal, é em celebrações como o carnaval que existimos de um modo que não somos capazes de viver no cotidiano, muito mais livres e desapegados. E é nessa alegria que nos iluminamos qual o bebê Obaluâe, cuja história foi recitada por uma voz infantil na abertura: com uma doença de pele, fora abandonado pela mãe, mas resgatado por Iemanjá; a orixá das águas o amamenta, dá a ele uma roupa de palha que recobre seu corpo e o cuida; ele, curado mas com cicatrizes, torna-se lindo e brilha num dourado intenso.
A segunda cena, aliás, é claramente inspirada no mito desse orixá das doenças e da cura, que teve suas feridas transformadas em flores de pipoca. Como cenário, cinco colunas feitas de tiras de tecidos em tonalidades de bege remetem às vestes da divindade também conhecida como Xapanã e Omulu. É de dentro delas que surgem bailarinos cujos figurinos são malhas ajustadas aos corpos compostas por retalhos de tons vermelhos e com texturas de rede – semelhantes às das meias-arrastão. Numa poderosa metáfora, esses corpos tomados por feridas saem de baixo das colunas e dançam de modo ritualístico, com uma óbvia e acertada inspiração indígena. Está posta, portanto, uma reflexão sobre nosso jeito de estar no mundo.
De que, afinal, nos escondemos? Que existência é esta na qual o que nos torna mais humanos, a fragilidade, é motivo de pudor? No tempo das imagens e da felicidade plena das redes sociais, muitas vezes parece inadmissível que não sejamos super-humanos. Mesmo a doença é representada como emblema de força e superação, mas raramente como o momento em que nos voltamos para nós mesmos. E justamente aí está a grande beleza de Cura, que nos puxa de volta para a nossa real condição humana. Numa conjunção de coreografia, figurino, música, cenário e iluminação impecáveis, é um espetáculo imperdível para nos ajudar a atravessar de modo mais sensível, poético e, por isso, sábio esses momentos que serão para sempre marcas em nossas existências.