Diante da necessidade de fortalecer a dignidade negra em disputas artísticas cênicas, os artistas Silvia Duarte e Thiago Pirajira idealizaram um evento totalmente digital. A Cura – 1ª Mostra de Artes Cênicas Negras de Porto Alegre iniciou sua programação nesta quarta-feira (2) pela manhã, e trará oficinas, apresentações e conversas até a próxima segunda-feira (7).
As produções exibidas são de artistas tanto da capital gaúcha quanto de outros territórios no Brasil. A mostra propõe pensar a contra-colonização cênica e aponta modos futuros para os processos de criação. Ao mesmo tempo, discute a luta antirracista, o racismo e a celebração da vida.
— A arte negra é uma arte brasileira. E a sociedade precisa saber disso. Enquanto houver necessidade, enquanto estivermos invisibilizados, enquanto houver o genocídio da população negra, temos que ter políticas públicas. Terá de haver encontros de artes e artistas negros, amostras, festivais de artes negras, enquanto estamos vivendo nesse momento no país. E estamos fazendo esse enfrentamento ao racismo, ao sexismo, ao machismo. Por isso que a Cura tem essa importância — afirma Silvia.
O projeto foi idealizado primeiramente pelo coordenador de Artes Cênicas da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Fernando Zugno. À reportagem, ele conta que já percorreu diversos festivais da capital gaúcha, do Brasil e até internacionais, e acabou percebendo que há poucos eventos dedicados a artistas negros. Além disso, toda a equipe também é, propositalmente, negra.
— A gente decidiu fazer uma obra que focasse em mostrar toda a potência e a subjetividade desses artistas. Mostrar toda essa amplitude de pensamento, de raciocínio. A diversidade de raciocínio mesmo dentro de um recorte de uma programação negra — disse Zugno. — E não só que tivesse uma programação negra, mas também fosse produzido, organizado, pensado, curado por uma equipe também negra. Todas as áreas de trabalho de construção do festival foram pensados por negros. Então, a importância de dar protagonismo absoluto para esses artistas, essa equipe, e para deixar que eles falem por eles mesmos para poderem de fato ter essa abrangência — continuou.
O convite de Zugno para Silvia e Pirajira tomarem a frente desse projeto ocorreu ainda no início do ano. Ambos construíram uma linha da história do teatro negro do Rio Grande do Sul e começaram a pensar em quais atrações nacionais poderiam trazer. Não à toa, o primeiro espetáculo apresentado nesta quarta-feira foi Mulher Arrastada. A obra, que foi interpretada por Celina Alcântara e Pedro Nambuco, conta a história de Cláudia Silva Ferreira, 38 anos, uma mãe negra de quatro filhos biológicos e quatro adotivos que foi morta pela polícia e arrastada ainda viva pelas ruas do Rio de Janeiro.
— É um espetáculo forte, pertinente e necessário neste momento de luta antirracista, neste momento em que corpos negros estão sendo mortos, esse genocídio — avalia Silvia.
Do momento em que o projeto foi idealizado até dezembro, diversos acontecimentos chamaram a atenção da mídia e da sociedade. Dentre eles, por exemplo, a morte de George Floyd, um homem negro, por um policial branco nos Estados Unidos, o que causou uma onda de protestos no país e o crescimento do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, em português). No Brasil, mais recentemente, um fato que causou indignação foi a morte de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, dentro do supermercado Carrefour.
— Estamos vivendo um momento pandêmico, mas também dessa chaga que é o genocídio, que é o feminicídio, em que as mulheres negras mais morrem em feminicídios. Os jovens negros são os mais assassinados. (...) São as mulheres negras, nesta pandemia, as primeiras a perderem seus empregos. A gente está nesta estatística — aponta a artista.
— Tudo isso que aconteceu nos Estados Unidos e no Brasil ficou mais escancarado, mas nós já sabíamos disso há muito tempo. A gente carrega essa violência atravessada no nosso corpo há muito tempo, há séculos. É disso que a gente veio falar. A gente quer ocupar esses espaços de arte, de poder, que nem agora com a eleição de vereadores negros (em Porto Alegre), porque nós somos cidadãos brasileiros e temos esse direito — finaliza.
Além das performances, a mostra também oferece uma oficina de dramaturgia e as rodas da cura, um espaço de reflexão dos artistas negros. Alguns dos espetáculos devem ser reservados previamente via Sympla por se tratar de uma reunião no Zoom, enquanto outras atrações ficam disponíveis no Youtube.
Confira, abaixo, a programação completa:
Quinta-feira (3)
9h às 12h - Oficina: Dramaturgia afrodiaspórica: Um foco na construção de narrativas negras. Com Onisajé.
15h - Roda da Cura: As gingas negras como fundamento cênico: jeitos, modos e tempos de narrar histórias do corpo. Com Rui Moreira, Iara Deodoro, Cleyce Colins e Manoel Timbaí.
19h - Espetáculo: Encanto Zumbi, com o Coletivo Montingente.
21h - Espetáculo: O Muro, com Denilson Tourinho.
Sexta-feira (4)
9h às 12h - Oficina: Dramaturgia afrodiaspórica: Um foco na construção de narrativas negras. Com Onisajé.
15h - Roda da Cura: Dramaturgia como prenúncio: corpo palavra e a dança dos tantos nós. Com Cristiane Sobral, Grace Passô e Silvana Rodrigues.
19h - Espetáculo: P E Ç A. Com Rita Rosa Lende.
21h - Espetáculo: Macumba Virtual. Com Saskia.
Sábado (5)
15h - Roda da Cura: Rede de festivais e mostras pretas: curadoria, articulação e estratégias de futuro. Com Thaise Machado, Ellen de Paula, Gabriel Cândido, Thiago Pirajira e Paulo Mattos.
19h - Espetáculo: Sobrevivo. Com a Rede Espiralar.
21h - Espetáculo: Ensaio sobre a Cebola. Com o Coletivo Notas Pretas.
22h - Espetáculo: Retrospectiva preta 2020. Com Grace Passô e Novíssimo Edgar.
Domingo (6)
15h - Roda da Cura: Cena útero: corpo e processos criativos de artistas mães. Com Dedy Ricardo, Mayura Matos, Joana Amaral e Silvia Duarte.
16h30min - Espetáculo: Tecnologias do Sul: voltei a falar com as árvores / Fruta do futuro. Com Mario Lopes e Anna Tjé.
19h - Espetáculo: O feminino Sagrado: um olhar descendente da mitologia africana. Com o Afrodul Odomodê.
21h - Espetáculo: Desencaixotando cenas negras. Do Grupo Caixa Preta.
Segunda-feira (7)
9h30min às 11h - Seminário Narrativas Diversas: 30 anos de teatro olodum. Com Valdineia Soriano, Evani Tavares, Márcio Meirelles, Cássia Valle, Jessé Oliveira e Jackson Tea.
11h às 12h30min - Seminário Narrativas Diversas: Mulheres negras e o futuro do teatro no Brasil. Com Celina Alcântara, Onisajé, Sanara Rocha e Thiago Pirajira.
14h às 15h30min - Seminário Narrativas Diversas: Corpo negro na dança. Com Amélia Conrado, Bruno de Jesus, Anielle Conceição Lemos, Karen Tolentino e Luciano Tavares.
15h - Roda da Cura: Veículo Sur: Performatividade em movimento. Com Didam Hou Braga, Malu Avelar, Mário Lopes e Thiago Pirajira.
19h - Espetáculo: Corpos Ditos. Com o Grupo Pretagô.
21h - Espetáculo: Reverb. Com Mário Lopes e Malu Avelar.
21h30min - Encerramento.