A simplicidade de vida e a genialidade que expressava nos palcos caminham lado a lado na fotobiografia Bibi Ferreira, uma Vida no Palco. A obra tem coordenação editorial do empresário e mestre de cerimônias Nilson Raman, amigo da biografada, e entrevistas realizadas por Maria Alice Silvério que registram a trajetória de um dos maiores nomes do teatro nacional. A nova edição do livro, que atualiza as duas últimas décadas da carreira de Bibi (1922-2019), está disponível a partir desta segunda-feira (1º), quando ela completaria 98 anos. A versão virtual é gratuita, e a física tem uma tiragem limitada de 800 exemplares.
Com 292 páginas, a nova edição mostra o início de Bibi no circo, passando por todas as suas produções nas artes cênicas, pela televisão, grandes interpretações – como a de Édith Piaf, seu papel mais longevo - até chegar ao dia de seu falecimento, em 13 de fevereiro de 2019. A própria atriz sempre conseguiu opinar sobre o material: ela ia sendo atualizado aos poucos por Raman, que visita cada projeto dela com recortes de jornais e fotos.
— Sempre fiz bonecos, e a Bibi ia riscando, sugerindo, circulando. Tudo o que ela pedia era feito. Focamos bem nos projetos, para mostrar seu impacto — destaca Raman, lembrando particularmente de uma turnê da atriz pelos Estados Unidos, quando uma edição em inglês motivou uma reportagem no jornal The New York Times.
No ano passado, Bibi completaria 77 anos de trajetória. A artista seguiu com ensaios o máximo que pôde. Raman conta ter organizado treinos com quantidade reduzida de pessoas no quarto de hospital, pois planejavam fazer um espetáculo em homenagem aos 10 anos de falecimento de Dorival Caymmi.
— 2018 foi um ano difícil para ela. Foram três hospitalizações e, na última, ela perdeu o movimento das pernas. Para uma pessoa que teve uma vida de aplausos, não deve ter sido muito satisfatório ficar um ano olhando para um teto branco. É algo da vida mesmo — diz Raman.
O autor acredita que o que manteve Bibi viva e tão ativa até o final foi a paixão pelo teatro.
— Não foram as viagens, ass turnês nacionais, e sim o palco. Era o palco que mantinha ela viva. A Bibi era a Bibi no palco. Quando saía dali, era uma senhora clássica de 90 e poucos anos. Tinha vezes que queria papo, em outras, não. Ela era muito engraçada, divertida, religiosa… E fazia questão de cumprimentar cada um, independente de quem fosse, ao sair do teatro — lembra Raman.
Bibi, Eva Sopher e Porto Alegre
A relação entre Raman e Bibi começou ainda na década de 1980, quase 10 anos antes de ele começar a trabalhar efetivamente com a artista. Afilhado da jornalista Dulce Damasceno de Brito, amiga de Bibi que a apresentou para Carmem Miranda, Raman assistiu ao espetáculo de Piaf mais de 15 vezes em São Paulo. Após cada sessão, ele e a tia iam ao hotel de Bibi, e jantaram juntos por semanas.
A partir da proximidade com a filha de Bibi, Tina, Raman seguiu os passos de sua futura parceira de palco. Em 1990, quando se mudou para o Rio de Janeiro, o empresário voltou a procurar Tina, que acabou organizando um encontro dele com a mãe.
— Quando cheguei na casa da Bibi, nunca vou esquecer. Ela só disse: “Tudo menos a mentira”, de forma séria. E logo em seguida: “Eu não gosto de surpresas”, também de cara fechada. E em seguida, emendou perguntas sobre a minha tia e tudo foi leve. Essas duas frases dela me marcaram para sempre — pontua Raman, que começou a atuar como produtor com o espetáculo Bibi in Concert 1, naquele mesmo período.
Em seguida, Raman ajudou a organizar as comemorações do centenário do pai de Bibi, o também ator Procópio Ferreira. Em 1999, o laço se estreitou de vez quando Raman passou a atuar como mestre de cerimônias na turnê nacional de Bibi Canta e Conta Piaf no lugar de Gracindo Junior – que não conseguiria viajar.
Entre as viagens, o Rio Grande do Sul sempre esteve em perspectiva. Raman recorda fortemente dos laços de Bibi com Eva Sopher – a atriz era madrinha da diretora do Theatro São Pedro. Quando vinham a Porto Alegre, os dois faziam questão de passar, nem que fosse de carro, em frente ao antigo Teatro da Ospa, na Avenida Independência. O local sediou edições memoráveis do Bibi in Concert e espetáculos da carioca.
— Ela sempre lembrava também de uma foto do pai dela, em que ele era levado no ombro do povo, pela multidão, do navio até o cais de Porto Alegre — aponta Raman.
No palco, por inteira
A partir de 1983, quando Édith Piaf completaria 20 anos de morte, Bibi deu início à atuação como a cantora francesa, que marcaria mais de 30 anos de sua trajetória. A voz das duas artistas serem muito parecidas e o repertório, que se encaixava com a história da brasileira, contavam pontos a favor dela.
— A Bibi sempre ria quando falavam que ela incorporava Piaf. Tinha uma consciência de cena, de sempre promover uma viagem ao público em cada detalhe — comenta Raman.
Essa preocupação de Bibi em atuar cuidando de cada movimento, como construção de um personagem, é o que a colocou na história do teatro nacional, segundo seu colega de palco.
— Ela era um vulcão quando entrava em cena. Sempre dizia: “Filho, ou eu saio arrasada do palco, ou eu não fiz. Não tem como entrar pela metade”. De fato, não tinha como ela cantar com aquela voz, em um salto 15, interagir com todos sem se entregar totalmente. Algumas vezes, ela saía da coxia e falava: “Me deixem sentar, acabei de correr uma maratona” (risos) — conta Raman.
Simples, dedicada e uma alma dos palcos, Bibi nunca foi preocupada em circular em grupos específicos. Raman acredita que, dificilmente, terá tempo de conviver tão próximo de alguém tão brilhante:
— Ela era muito humilde, muito diva mesmo. Essa palavra, "diva", foi feita pra ela. Em cena, ela era brutal, vi pessoas se desmontarem na plateia por ela. Ela era força, acessível, uma diva completa.