Na peça Pode Ser que Seja Só o Leiteiro Lá Fora, Caio Fernando Abreu imagina o encontro de um grupo de jovens entre 20 e 30 anos que não se enquadram nas expectativas da sociedade em uma casa abandonada numa noite chuvosa. Nessa comunidade temporária, compartilham reflexões sobre a vida e manifestam o medo de que algo grave está por acontecer.
Identificando um paralelo entre o Brasil da época da ditadura – esta obra de Caio foi proibida pela Censura Federal – e o tempo presente, o diretor Bob Bahlis decidiu adaptar a peça com um toque inusitado. Os personagens agora homenageiam figuras do rock gaúcho: Flávio Basso (vivido por Bruno Bazzo), Edu K (Samuel Reginatto), Charles Master (Leonardo Barison), Frank Jorge (Zé Fernandes) e Biba Meira (Nina Rouge) – todos chamados apenas pelo primeiro nome.
Junto com os músicos convidados André Hernandes (guitarra) e Tazz Goetems (bateria), o elenco de atores-músicos estreia o espetáculo De Volta para a Garagem em sessão única nesta quarta-feira (16), às 20h – não em um teatro, mas no bar Opinião. A casa de shows receberá 250 cadeiras para acomodar o público, mas o diretor acredita que, durante os números musicais, será difícil ficar sentado. Haverá outras sessões únicas em novembro e em dezembro, e uma temporada em janeiro.
De Volta para a Garagem é uma mistura de peça e show. Para definir o setlist que será tocado ao vivo, Bahlis pediu a jornalistas, músicos e outras pessoas ligadas à cena local que citassem os maiores clássicos do rock gaúcho. Para dar um gostinho das 12 músicas selecionadas: Um Lugar do Caralho (Júpiter Maçã, codinome de Flávio Basso), Amigo Punk (Graforreia Xilarmônica), Campo Minado (Bandaliera), Sob um Céu de Blues (Cascavelletes), It’s Fuckin’ Borin’ to Death (DeFalla) e Amor e Morte (Julio Reny).
Persistência
O projeto teve início no ano passado, quando Bahlis lembrou que em 2019 comemoraria 50 anos, a mesma idade do Festival de Woodstock. É ele quem conta:
— No final de 2018, estávamos em um momento estranho, com o Bolsonaro ganhando a eleição, as pessoas ficando agressivas, querendo proteger a “família tradicional brasileira”, com faixas a favor da ditadura. Aí pensei em fazer uma peça sobre uma banda que vive os resquícios da ditadura, nos anos 1980. Hoje estamos novamente reféns da sensação de ser vigiados, perseguidos. Ninguém se posiciona na internet, por medo.
O diretor, então, começou a escrever uma peça do zero, mas pela página 10 lembrou de Pode Ser que Seja Só o Leiteiro Lá Fora, escrita em meados dos anos 1970 e estreada apenas em 1983, com direção de Luciano Alabarse.
— O texto do Caio falava de tudo isso. Sempre me perguntei por que foi censurado, pois não tem nada de mais. Apenas fala de pessoas que se sentem diferentes da normalidade. A gente engole a censura como se estivéssemos fazendo algo errado, mas na verdade é apenas outro jeito de ser — diz Bahlis.
Imaginando no palco um encontro de uma superbanda do rock gaúcho, De Volta para a Garagem é também uma homenagem à persistência dos artistas que decidem fazer carreira no Rio Grande do Sul:
— Claro que a gente ganha dinheiro, às vezes faz um espetáculo de sucesso, mas é como se as coisas não rolassem direito. Essa sensação de fracasso está muito presente na peça do Caio. É um medo do futuro, do que vem pela frente. Parece que tudo vai se repetindo.