Depois da estrear na programação do festival Porto Verão Alegre, em fevereiro, o espetáculo Lilás, de Luciano Alabarse, ganha temporada a partir de hoje, às 21h, no porão do Teatro Renascença (Avenida Erico Verissimo, 307). Alabarse adapta dois textos do dramaturgo norueguês Jon Fosse, que tratam de sentimentos de perda em tempos de incerteza – como os que o Brasil vive, destaca o diretor. O enredo parte do encontro de cinco jovens músicos para o ensaio de sua banda em um porão. Com personalidades e perspectivas de vida distintas, eles permeiam o ambiente musical com conflitos verbais e físicos.
— A encenação agrega dois textos curtos do autor: Lilás e Guitar Man — explica Alabarse a GaúchaZH. — O elo entre os textos é o personagem título do segundo. O futuro chegou e se transformou, para ele, em um inventário de duras perdas. A palavra foi e é o centro de toda a ação, em um espetáculo de enorme energia física, de pegada roqueira. A banda, aliás, executa um número musical que tem impressionado quem já viu a peça.
Lilás terá sessões semanais, sempre na segunda-feira. No elenco estão Pingo Alabarce, Frederico Vittola, Leonardo Koslowski, Miriã Possani e Nicolas Vargas.
Entrevista: Luciano Alabarse, diretor de teatro
Jon Fosse é um dos dramaturgos mais encenados na Europa, mas ainda não teve o reconhecimento que merece no Brasil. Que características desse autor chamaram a sua atenção e o estimularam a montar um espetáculo com dois textos dele, Guitar Man e Lilás?
Sou um diretor "das antigas". Texto bom é o que me mobiliza no trabalho da direção teatral. Quando li o romance Melancolia fiquei impressionado com a força e contundência do autor. Descobri que era também um dramaturgo de mão cheia. Duas características me chamam a atenção em sua dramaturgia: a aura beckettiana, onde a ação vulcânica parece que se arrasta em ambientes estagnados e sem esperança. A segunda é a circularidade repetitiva de sua escrita, que lembra muito Thomas Bernhard, outro dramaturgo da pesada que conheço bem. Em Melancolia havia momentos assim, impactantes. Nas peças os personagens reiteram falas de outros, em contextos que vão fechando um ciclo e dando coerência e sentido ao texto.
O espetáculo se passa no porão do Teatro Renascença, um lugar pouco conhecido pelo público. Como você encontrou esse espaço e de que forma ele é fundamental para a ambientação da montagem?
Há mais ou menos 20 anos, quando exercia o cargo de coordenador de Artes Cênicas (da secretaria municipal da Cultura), realizamos um projeto chamado Sessão Maldita, que acontecia sextas e sábados no porão do Renascença. Muito aproveitamos aquele espaço para montagens alternativas e que se adaptassem às limitações do local. No caso de Lilás, a ação se passe literalmente em um porão abandonado. A lembrança e a associação foram imediatas. Com o atrativo de revelar um local pouco conhecido, mesmo de público frequentador do teatro local, o porão revelou-se o local perfeito para exacerbar a claustrofobia do texto. As primeiras apresentações mostraram um público ávido por conhecer o local. Já saímos em vantagem no que diz respeito à encenação. O lugar é absolutamente adequado a essa montagem.
Que tipos de anseios você identifica nos jovens personagens de Guitar Man e Lilás? De que forma é possível estabelecer uma relação com os jovens brasileiros de hoje?
Para mim, foi um trabalho extremamente renovador. Me fez lembrar muito os anos iniciais da profissão, todos os sonhos e choques que o exercício desse ofício sagrado traz àqueles que encaram o chamado da arte enquanto profissão. Tanto aqui quanto na realidade geográfica e histórica da peça, vemos que tudo converge, se mistura, e é por isso a força do teatro, essa capacidade de amalgamar realidades diversas. Vivemos um período difícil no que diz respeito à relação da profissão com os poderes estabelecidos. O caso das leis de incentivo é exemplar. Imagino que para quem começa a pedreira apresenta obstáculos e dificuldades, assim como a minha geração teve as suas. Lutávamos contra a censura estabelecida pela ditadura, hoje enfrentamos uma censura econômica real e diferenciada. Vejo pelos próprios atores da peça que as identificações com seus personagens estão acima da média. Nesse encontro de alguém consigo mesmo, com seus sonhos profissionais, suas perdas, a relação com o Brasil é idêntica.
Aqui, você trabalha com um elenco de jovens atores, muitos dos quais não havia trabalhado antes. Como foi esse encontro de gerações, suas sintonias e dissonâncias?
Pessoalmente, foi uma surpresa muito boa. Eu e o Pingo (Alabarce, com grafia diferente) somos parentes, minha ponte com a nova geração local é ele. Foi ele quem me trouxe o elenco e, a partir daí, foi uma empatia imediata, uma vontade de trocar figurinhas que os ajudassem em seu trabalho específico na peça e para muito além dela. Falamos muito sobre arte nos ensaios, sobre percepções e resultados de montagens que estão em cartaz. Eles têm uma avidez de conhecimento cênico que me deixa comovido. São atentos, dispostos, disponíveis. Em um dos nossos ensaios, um deles me falou que estava encantado com o ensaio de mesa, porque jamais tinha experimentado esse método. Fiquei olhando, refletindo sobre isso. Não me agradam modismos no teatro. O novo sempre vem, é certo. Mas é fruto da sequência natural da evolução metodológica da nossa própria história. Em resumo, me senti acolhido tanto quanto quis acolhê-los. Hoje, somos amigos e companheiros de palco. É muito bom.
Neste ano, você montará um novo espetáculo com texto de Jon Fosse, agora baseado no romance Melancolia. Poderia adiantar como será esse trabalho e quais qualidade identifica no livro?
Melancolia não foi escrito diretamente para o palco, ao contrário de Lilás. É um romance centrado na figura de um pintor do século 19, esquizofrênico e talentoso. Sua trajetória é uma verdadeira descida aos infernos. Eu e Marcelo Adams planejamos levar esse texto vigoroso ao palco, como um monólogo, onde toda a atenção estará focada nesse personagem. Ao mesmo tempo, já planejamos a segunda montagem da Turma do Lilás, como eu chamo o pessoal. É um texto que me nocauteou, muito bem traduzido pelo Pingo. Até onde eu sei,Todas as Coisas que Brilham, do britânico Duncan Macmillan, nunca foi montado no Brasil. Também é hora de levar ao palco Precisamos falar sobre o Kevin, minha adaptação teatral à obra de Lionel Shriver. Já era essencial, depois da tragédia de Suzano, ficou tristemente urgente falar sobre o assunto. E, com muito prazer, assinar a direção do primeiro show de Miriã Possani, pois ela canta muito bem e de um jeito que vai chamar atenção. Quero ver tempo pra tudo isso. Mas essa é a meta.