Em uma sociedade em que o preconceito não é só naturalizado como legalizado, a vida familiar se torna a primeira instância de luta para que alguém possa simplesmente ser quem é. É esse o poderoso subtexto de O Jornal – The Rolling Stone, peça codirigida por Lázaro Ramos e Kiko Mascarenhas (também parceiros na série Mister Brau), que, depois de estrear no fim do ano passado e circular pelo Brasil, chega à Capital com sessões neste final de semana, sábado e domingo, dentro da programação do 13º Festival Palco Giratório Sesc/POA.
Escrito pelo premiado dramaturgo inglês Chris Urch, o texto de O Jornal – The Rolling Stone foi vertido para o português pelo tradutor Diego Teza. A peça aborda relações familiares frente ao cenário de perseguições a minorias LGBT em Uganda, no leste da África. A direção foi um trabalho conjunto de Ramos e Mascarenhas, e o elenco de protagonistas foi garimpado após uma oficina realizada para prospectar jovens atores negros.
Na trama, após a morte do pai e já órfãos de mãe, os jovens Joe (André Luiz Miranda), Dembe (Danilo Ferreira ) e Wummie (Indira Nascimento) precisam tocar suas vidas. Joe, o mais velho, busca um caminho para a vida preparando-se para ser pastor, enquanto Dembe estuda – e a irmã é forçada a sair da universidade para trabalhar. O drama se instala quando Dembe conhece e se apaixona por Sam (Marcos Guian), um afeto proibido não apenas pelos preconceitos sociais, mas pelas próprias leis do país, que punem a homossexualidade. Em torno desse núcleo familiar, gravitam outros personagens, como a jovem muda Naome (Marcella Gobatti) e a religiosa Mama.
– A Mama é uma vizinha meio tia, que ajudou a criar esses irmãos. E é uma beata, radical e conservadora. Ao mesmo tempo, todas as ações dela são por amor, e sob essa justificativa ela acaba fazendo coisas terríveis. Mas ela não é uma vilã. Eu a vejo mais como uma vítima de uma estrutura castradora que se estende a todas as mulheres daquele país – explica a intérprete da personagem, a atriz angolana Heloísa Jorge (a Laura da novela A Lei do Amor).
O título da peça faz referência ao semanário Rolling Stone (sem conexão com a revista internacional de música e cultura pop), publicação conservadora e nacionalista de tiragem reduzida editada por um trio de universitários de Kampala, a capital de Uganda. Fundado em 2010, o periódico publicou, em outubro do mesmo ano, uma “edição denúncia” que trazia fotos, nomes e endereços de cem homossexuais residentes no país. As páginas eram acompanhadas por um banner amarelo com a inscrição “enforquem-nos”. Com a repercussão do artigo – que levou a uma decisão da suprema corte de Uganda interrompendo a publicação do jornal – o professor e ativista de direitos LGBT David Kato, um dos listados e um dos signatários da ação judicial contra o Rolling Stone, foi assassinado em sua casa, em janeiro de 2011. É diante desse pano de fundo que se desenvolve a jornada de Joe, Dembe e Wumbe.
– Eu tinha a expectativa de que esse texto criasse empatia, pelo menos a ideia era essa quando começamos o trabalho. Apesar de mostrar uma realidade que não é nossa, não está tão distante da gente, pelo contrário. E a gente tem visto reações surpreendentes da plateia. A história atinge em cheio o público. É um retrato terrível, e as pessoas saem muito mexidas, muito comovidas, seja por se identificarem com o sofrimento dessa realidade seja por conhecerem alguém que se identifica. Houve um rapaz que levou a mãe ao espetáculo, e eu vi essa mãe pedir perdão ao filho no final da peça – conta Mascarenhas.
Para o diretor, um elemento fundamental da montagem foi ter Lázaro como seu parceiro na empreitada e poder contar com o elenco de seis protagonistas negros. Para ele, foi o momento de um diretor dar um passo atrás e absorver o que o elenco tinha para dizer.
– A gente trabalhou o texto junto com os atores, e o Lázaro trazia a afrobrasilidade para a montagem. O Lázaro trazia o que a peça precisava, a África que a gente precisava ver e entender. E isso passou para a linguagem do espetáculo, é cheio de simbolismo. Eu sou um diretor branco trabalhando com um elenco negro em uma peça inglesa que se passa na África, então meu papel era estar aberto ao que eles tinham para me ensinar – diz Kiko Mascarenhas.
O JORNAL – THE ROLLING STONE
Sábado e domingo, às 21h.
Teatro Renascença do Centro Municipal de Cultura, Arte e Lazer Lupicínio Rodrigues (Erico Verissimo, 307). Drama, 90 min. Classificação indicativa: 12 anos
Texto de Chris Urch, com tradução de Diego Teza. Direção de Kiko Mascarenhas e Lázaro Ramos.
Ingressos: R$ 20 (Meia entrada para estudantes, classe artística, maiores de 60 anos e pessoas com deficiência, mediante identificação).
Os ingressos para a sessão de sábado já estão esgotados.