Homem de teatro prolífico, o dramaturgo e diretor Júlio Conte participa do Porto Verão Alegre 2018 com cinco espetáculos. Os mais recentes, focados em dois protagonistas, indicam uma busca pelo que ele mesmo define como o essencial do teatro. No passado, escrevia uma peça com 50 páginas e acabava enxugando 20 ou 25 delas. Agora, procura incorporar a economia no próprio processo da escrita.
– Estou tentando encontrar um tipo de teatro que não tem efeitos. Tem apenas a peça, o drama e os personagens – afirma.
O experimento mais radical nesse sentido é sua nova montagem, Latidos, que estreia nesta terça (30/1) na Sala Álvaro Moreyra (Av. Erico Verissimo, 307), com reprises quarta e quinta, sempre às 21h. São apenas 56 minutos de ação, nos quais uma mãe e uma filha acertam as contas de uma vida poucos dias após a morte do pai.
Virgínia, a mãe, lembra da difícil convivência com o falecido marido e revela um desejo conflituoso em relação à maternidade. Valentina, a filha, tem mágoas guardadas sobre a mãe e se interroga sobre o sumiço de seu cão. Tudo se passa durante um café da manhã – o diretor promete tanto realismo que o público sentirá o cheiro de café, pão e bolo sobre a mesa.
O elenco é um encontro de gerações. Virgínia é vivida por Nora Prado, experiente atriz que integrou o Grupo Tear, da diretora Maria Helena Lopes, e passou 25 anos fora de Porto Alegre, período durante o qual participou de montagens da Cia. de Ópera Seca, de Gerald Thomas. Hoje, atua na Cia. Megamini ao lado de Gabriel Guimard. Valentina, a filha, é o papel de Catharina Conte, estrela em ascensão da cena gaúcha com bagagem que inclui, entre outros trabalhos, um espetáculo solo, Como Sobreviver ao Fim do Mundo, que esteve na programação deste Porto Verão Alegre. Curiosidade metateatral: Catharina é filha de Júlio e de Patsy Cecato, que assina a coordenação de produção do espetáculo.
Para Júlio, Latidos é uma peça sobre a elaboração do luto. Ele mesmo perdeu o pai e a mãe em um espaço de apenas três meses em 2015.
– O luto marca a civilização – diz o diretor e dramaturgo. – O elemento que diferenciava os homens primitivos do macaco antigo era o enterro de seus mortos.
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Entrevista: Catharina Conte, atriz
Como você descreveria Valentina, a sua personagem?
Valentina é uma mulher em formação, uma jovem com uma força extrema dentro de si. Ela possui um nível de responsabilidade muito grande, o que a faz assumir os cuidados do pai no seu período enfermo. Sua relação com a mãe, Virgínia, interpretada pela Nora, é de muita raiva e rancor. Ela vê a mãe como uma mulher fria, superficial, e não se identifica com as soluções encontradas pela mãe no período de doença do pai. Em uma relação entre mãe e filha, é bastante comum que a filha não queira ser igual à mãe, e essa fuga, essa recusa da identificação, acaba por denunciar as semelhanças entre as duas. Se analisarmos com profundidade, há muita raiva, competição e culpa envolvidas na relação entre uma mãe e uma filha, e esse é o tema central do espetáculo.
Como foi para você o processo de ensaio deste trabalho intimista no qual se destacam muito o trabalho das atrizes e a palavra?
O processo está sendo com certeza um dos mais difíceis da vida. A proposta do espetáculo é uma encenação que tem como pilar o trabalho do ator, puro. E nesse tipo de teatro, que busca uma naturalidade que se assemelha à vida, não há artifício: ou a coisa acontece ou não acontece. O trabalho principal é na criação desse universo, dessa ficção na qual moram essas personagens, descobrir a verdade delas. Há muito de mim na Valentina, então a dificuldade foi justamente afastá-la da Catharina. Latidos é uma ação em tempo real, como se o espectador realmente entrasse na casa daquelas mulheres. O tempo-ritmo é o da própria vida, e isso é um desafio que pede uma escuta profunda no jogo da atuação. Está sendo muito bom caminhar no escuro com a Nora, e estou aprendendo muito ao vê-la descobrir a Virgínia em si.
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Entrevista: Nora Prado, atriz
Como você descreveria Virgínia, a sua personagem?
Virgínia é uma mulher prática, ambiciosa, perseverante e disposta a tudo para proteger a sua família. Em função disso, omitiu fatos relevantes da sua relação com o marido a fim de poupar a imagem do pai para sua única filha, Valentina. O marido faleceu em decorrência de um câncer fulminante, e ambas estão vivendo o princípio do luto. Faz mais ou menos sete dias desde que houve o velório. Valentina está deprimida, não tem se alimentado desde então. Virgínia está muito preocupada com a filha e prepara um café da manhã digno de hotel para abrir o apetite da filha. É uma oportunidade para ambas se verem frente a frente novamente e acertarem as contas em relação ao passado. Virgínia também omitiu a morte do cachorro, e neste café da manhã muitas feridas serão abertas novamente. Virgínia ama a filha, mas tem receio de tocar em assuntos delicados. Valentina a culpa por ter ficado distante do pai nos últimos seis meses, mas Virgínia tem motivos para isso. Ambas terão de se enfrentar com seus medos, ódios, frustrações, fragilidades e expectativas diante da nova vida. Há muita mágoa e rancor para serem revisitados entre ambas. É um momento tenso e delicado, mas também com abertura para o perdão e o afeto. Virgínia sabe que Valentina é tão teimosa quanto ela e terá de ser clara e objetiva para recuperar o amor e a confiança da filha.
Na sua visão, como se complementa essa dupla de atrizes – uma jovem e outra experiente – que o espetáculo coloca lado a lado?
Se complementa de uma maneira muito estimulante, pois ambas amamos o nosso ofício e nos apaixonamos pelo espetáculo. O Júlio permitiu, inclusive, que a gente interferisse no texto, e isso foi muito produtivo. Trouxemos detalhes interessantes para as personagens. Catharina, embora seja jovem, tem muita experiência no ofício e se entrega sem reservas para os conflitos da personagem. A vi em cena no seu espetáculo solo, Como Sobreviver ao Fim do Mundo, no verão passado e fiquei impressionada com o seu talento e sensibilidade. Sua intensidade me alimenta, e estou adorando trabalhar com ela. Aliás, estou adorando ser dirigida pelo Júlio, com quem nunca tinha trabalhado antes. É um espetáculo difícil, mas um presente para qualquer dupla de atrizes.