Leia, a seguir, entrevista com Ana Luiza Ciscato, diretora da Cia. de Dança Lápis de Seda (SC), que é uma das atrações do Cena Acessível, dentro do projeto Cenas Diversas, da Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre. A programação começa nesta terça-feira (25/7) e vai até quinta (27/7), com entrada franca.
Quais foram os maiores desafios ao conceber um projeto como a Cia. de Dança Lápis de Seda?
Para desenvolver um trabalho inclusivo, é necessário ter uma visão inclusiva de mundo. Acreditar que o desenvolvimento das pessoas se dá por meio da conscientização de que todos temos uma importância e capacidades diferentes e é exatamente essa soma que traz beleza e aumenta as possibilidades de resolução das questões que são inerentes a todos nós. Todos temos formas diferentes de expressão, de aprendizado, de nos colocarmos na vida. Quando essas diferenças são respeitadas, aceitas e valorizadas, teremos uma sociedade mais justa, criaremos condições igualitárias de desenvolvimento, atuação, e representatividade.
Aprendi que a forma realmente não importa no fim das contas, essas coisas são muito variáveis de acordo com cada cultura. O que importa é a equidade de condições. Só assim novas formas de fazer as coisas podem florescer. É libertador que na arte não exista o "certo" ou o "errado", como em outras atividades sociais humanas. Promove não só uma possibilidade nova, de maior expressão do que há em nós, mas também de transformação. Quando criamos artisticamente, em determinadas condições favoráveis, ganhamos a chance de experimentar a nós mesmos e criar diferentes ângulos de contato com o mundo. Esse processo pode ser infinitamente enriquecedor. Podemos, da mesma forma, descobrir e desenvolver em nós mesmos capacidades e olhares antes totalmente desconhecidos.
Fundamental e importante nesse trabalho é a transformação do olhar social às pessoas com deficiência. Percebemos que o público, ao assistir a um espetáculo de dança inclusiva, questiona o conceito de "deficiência". Tem a chance de se colocar no lugar desses artistas, enxergar suas limitações e capacidades mal utilizadas por falta de oportunidades. O público demonstra emoções despertadas, sempre reveladoras de uma nova e forte identificação com os bailarinos, com sua luta e com seu amor pela arte, pela vida. Um amor novo, conquistado à custa de muito trabalho. Deixa uma sementinha plantada no longo caminho que temos a percorrer nesse sentido.
Você acha que as características dos artistas da companhia, que alguns entendem como "limitações", podem ajudar, pelo contrário, a expandir os horizontes do espetáculo do ponto de vista estético, ou seja, da beleza da cena e dos movimentos?
Trabalhar com diferentes corpos e formas de compreensão abre enormes possibilidades. Nos tira da zona de conforto, esse lugar onde estabelecemos fórmulas já comprovadas de sucesso, e nos desafia a percorrer um caminho totalmente novo. Essa é a minha maior fonte de inspiração desde sempre. Nesse ambiente, onde diferentes tipos de corpos trabalham juntos, com suas características diversas, não cabe tentar fazer distinções entre eles.
Automaticamente buscamos o que os une, versus o que nos separa. O ato de desconstruir conceitos como deficiência ou normalidade fica muito mais fácil do que parece em um ambiente assim. Aqui, o que importa é o benefício da diversidade, e não o que possa ser socialmente considerado ou entendido como deficitário ou "errado". Depois de um extenso período de apresentações do espetáculo Convite ao Olhar, em que embarcamos em turnês e participamos de todos os tipos de eventos, percebi que prevaleceu a química do grupo versus as disparidades corporais.
Quando superamos nossas questões individuais, a autorrepressão fica para trás. Vem o orgulho de si, do seu corpo, do corpo do outro e de quem nós somos juntos. Só conseguimos observar a evolução individual em sua totalidade quando observamos a evolução do grupo. Depois de tanto tempo de estrada, concluí que os bailarinos, sob a "minha supervisão", agora são um elenco firme, autoral, empoderado, com direito a decisões de todos os tipos. Livres das amarras da normatização social, eles demandam uma participação artística relevante em toda a produção da companhia. Eles são bailarinos profissionais, remunerados, conscientes e ativos na atividade da criação. Convidam o público a olhar não os limites de cada um, mas o espaço que existe além. Não o que eles, nós, temos de diferente, mas o que temos de parecido: o que não existia e tivemos a oportunidade de criar juntos.
Você pode explicar os temas e questões que motivam o espetáculo Convite ao Olhar?
Sim. Solidão foi o tema central trazido pelos bailarinos nos laboratórios de criação do espetáculo. Constatamos que todos os bailarinos sentiam na solidão uma dualidade. Ao mesmo tempo em que buscavam sair dela, temiam a vulnerabilidade implicada. Quando a sós, sentiam-se seguros e livres dos riscos da exposição. Mas, em contrapartida, estavam sempre a sós. Aprendi com eles muito sobre a solidão. De certa forma, é se esconder daquilo que realmente nos torna humanos. É uma vida construída sobre suposições ao invés de descobertas.
A coreografia buscou retratar esse sentimento. Uma metáfora dessa construção social é o elemento cênico central do espetáculo: um cubo vazado de 3 x 3 metros, com elásticos amarrados, meio emaranhados, mas que permitem a movimentação para além desta estrutura. Ao mesmo tempo que prendem os corpos dos bailarinos e são a base de movimentos expressivos no espaço, eles ampliam as possibilidades e limitações do corpo humano, possibilitam diferentes campos de visão na relação com o público, rompem com a frontalidade, abraçam múltiplos pontos de vista.
Como é financiada a companhia?
A companhia foi criada em 2014, em Florianópolis, no espaço Baobah, formado por sete artistas de diferentes áreas. O projeto Companhia de Dança Lápis de Seda – Plano Anual de Atividades está enquadrado na categoria Artes Cênicas e aprovado pelo Ministério da Cultura via Lei Rouanet/PRONAC 162593. O patrocinador é a empresa Cateno.
O principal foco da formação da Lápis de Seda foi entender que as características que uma pessoa traz em seu corpo não definem quem ela é. Todas as outras capacidades que elas podem ter florescem no ambiente da inclusão. No cotidiano, essas capacidades são reprimidas por um olhar de exclusão. Elas não podem surgir porque estamos acostumados (e assim fomos erroneamente formados) a só olhar para o que supostamente "falta" ou "sobra" ou é "diferente" no outro, em função de um padrão socialmente estabelecido. Essa redução de alguém a uma única característica diz respeito a uma escolha social, uma edição do olhar em relação aos outros e a nós mesmos. Buscamos, por meio do nosso trabalho, "atender" ao sujeito que se vê escondido atrás de qualquer característica "diferente" que ele apresente. Tanto nos bailarinos quanto em quem os assiste.
Aprendi que, no fim das contas, quase todo mundo se esconde atrás daquilo que aprende sobre si mesmo com o outro. Não só quem tem deficiências ou quem pertence a uma "minoria". A reflexão que propomos se mostra cada dia mais universal para mim. Com esse processo de entendimento superado, não saberia te responder se as características dos bailarinos facilitam ou não a busca de recursos. O nosso olhar não reducionista facilitaria a busca de recursos em um mundo perfeito. Mas, sinceramente, essa busca ainda é uma verdadeira jornada.
Conseguimos recursos de uma empresa privada por meio da Lei Rouanet, mas garanto que "fácil" não é uma palavra que possa descrever essa saga. Essa e várias outras formas de incentivo fiscal no Brasil poderiam ser revisadas para valorizar mais produções como a nossa. Existem grandes artistas, realmente geniais nesse país, que só não têm reconhecimento porque não têm dinheiro. Em resumo: não é fácil arrecadar recursos para a arte no Brasil. Para ninguém.
Como é a formação e o treinamento dos artistas da companhia?
Todos os bailarinos trabalharam comigo em outros projetos. Foi assim que nos conhecemos. Quando começamos a companhia, os convites foram sendo feitos. Gosto muito da configuração atual do Lápis de Seda. A química deles no palco e a nossa química durante o processo de criação é o que fala mais alto em Convite ao Olhar.
Buscamos uma formação bastante heterogênea, que valoriza formas diversas de movimentos. Contamos com uma bailarina com formação clássica e contemporânea, uma com formação em dança afro, um bailarino com formação em teatro, um sem nenhuma experiência prévia em dança e seis bailarinos "considerados" com deficiência, que conheci no trabalho que desenvolvo há 10 anos na Apae (Associação de Pais e Amigos de Excepcionais) de Florianópolis. Em nossos encontros, três vezes por semana, fazemos uma preparação física utilizando uma base técnica do balé clássico. Essa base busca uma verticalização do movimento, traz um caráter de equilíbrio, força, segurança. Atores, bailarinos contemporâneos e até cantores líricos usam essa preparação para suas atividades diárias. É a fundação sobre a qual preparamos nossos corpos para expressar os movimentos.
Outra base importante para nós vem da dança contemporânea e do teatro. Técnicas de palco, de criação artística e coreográfica, que ajudam a transformar nossa movimentação, tirar a coreografia da cabeça e colocar no corpo; pegar esses movimentos que surgem na sala e colocar no palco. Trabalhamos muito com a improvisação de contato, que ajuda a perceber características do movimento e do corpo do outro, coisas que os olhos não enxergam, mas o nosso corpo é capaz de sentir.
Lembro de um trabalho que realizei em 2012 para as Olimpíadas de Londres. A roteirista do espetáculo era uma mulher canadense, talentosíssima, chamada Alex Bulmer. Ela é cega desde a juventude. Apesar de ter sempre uma pessoa ao seu lado fazendo a descrição dos ensaios e coreografias, a Alex só conseguia perceber e sentir realmente as danças quando a colocávamos no meio da sala, dançando conosco. Aprendi que dança não é "olhar" com os olhos. Dança é "olhar" com a percepção. Esse é o olhar que convidamos o público a experimentar no espetáculo.
Nosso processo de criação é colaborativo desde o início. Para isso, exercitamos nossos seis pontos de vista: espaço, forma, tempo, emoção, movimento e narrativa. Essa técnica de viewpoints foi estabelecida por mulheres artistas dos anos 1970, especialmente pela coreógrafa e artista de teatro experimental americana Mary Overlie. O que buscamos ao implementar esse tipo de técnica é articular desconstruções de movimento e estabelecer um espaço de criação não-hierárquico, onde o bailarino é aquele que cria, não aquele que expressa a criação de um coreógrafo. Técnicas como essas ajudam a expressar com os corpos tudo o que vem de dentro.
Acredito que a nossa dança é um resultado desse longo processo de preparação. Aliás, acredito que dança é sempre o resultado de um longo e árduo processo. Dança para mim é a casa onde vivem a inclusão e a harmonia, onde somos os donos da nossa individualidade, onde nossas maiores realizações são possíveis. Dança é a casa onde vivemos juntos.