Desde junho de 2013, as ruas voltaram a ser palco de manifestações contra a situação no país. Depois das eleições do ano seguinte, os protestos se dividiram entre os que estavam a favor do impeachment de Dilma Rousseff e os que defendiam sua permanência na presidência. Recentemente, escolas foram ocupadas por estudantes que reivindicam melhorias na educação pública, e prédios ligados ao Ministério da Cultura ficaram repletos de artistas que pedem a saída de Michel Temer.
É nesse contexto de mobilização nos espaços públicos que o Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre chega a seu oitavo ano com uma edição de resistência: devido à crise econômica, o orçamento de R$ 824 mil de 2015 foi reduzido a R$ 200 mil neste ano. A questão financeira atrasou a realização do evento, que seria em abril, mas começa neste domingo e vai até o dia 28 (veja a grade completa no site do festival).
Estão garantidas 54 apresentações de 18 grupos (em 2015, foram 66 apresentações de 26 coletivos) em diferentes regiões da Capital. A escolha dos bairros foi baseada nos pedidos dos espectadores por meio de uma enquete (a votação para a edição de 2017 está aberta em ftrpa.com.br/acoes-especiais).
Por meio da noção de "espaços singulares", a programação vai oportunizar sessões em locais que figuram no imaginário da cidade ou guardam um simbolismo particular. A peça Kassandra (neste domingo, 19/6), da Cia. La Vaca (SC), será na boate adulta Carmen's Club; o espetáculo argentino Shakespeare inédito (dias 24 e 25) estará ambientado no Cemitério da Santa Casa; a coprodução Brasil-Argentina Odiseo.com (dias 20 e 21) ocorrerá na sede da produtora Estação Filmes; e o trabalho de teatro de animação Brechó da humanidade (de 19 a 25) será na residência do artista Rudinei Morales. O coordenador-geral e curador do festival, Alexandre Vargas, acredita que a rua potencializa o elemento político do teatro:
– Os artistas estão pensando a cidade, transformando esse material em objeto estético e devolvendo tudo isso para a sociedade. É uma chamada para a reflexão e um exercício de sociabilidade, mas também uma possibilidade de crítica, de conversa.
Vargas julga difícil prever, neste momento de polarização, as manifestações espontâneas que poderão ocorrer na interação entre artistas e espectadores:
– Tenho curiosidade sobre as reações que ocorrerão. Na rua, o artista está mais exposto, e a sociedade também se manifesta mais.
Em um contexto de intensificação das reivindicações sobre igualdade de gênero e de luta contra a violência doméstica, o evento traz dois trabalhos locais que articulam subjetividades femininas. A Usina do Trabalho do Ator (UTA) mostra a performance Dança do tempo (de 24 a 26/6), na qual um grupo de mulheres empreende uma jornada em busca dos filhos. Em In[penetrável] (dia 26), a performer Carina Sehn cria um "casulo existencial" em um cubo de madeira de 70 cm x 70 cm para refletir sobre a relação do corpo com sua externalidade.
DESTAQUES DA PROGRAMAÇÃO
Kassandra
A peça da Cia. La Vaca (SC) com Milena Moraes combina mitologia grega e cultura pop para recontar – ambientada em uma boate para o público adulto – a história da princesa de Troia cujas previsões não eram ouvidas.
Neste domingo (19/6), às 21h, no Carmen’s Club (Rua Olavo Bilac, 336). Distribuição de senhas uma hora antes
Odiseo.com
Apresentada em tempo real em três países (Brasil, Argentina e Alemanha), a peça mostra Ulisses como um executivo que nunca volta a sua esposa, limitando-se à comunicação pela internet.
Dias 20 e 21, às 21h, na Estação Filmes (Avenida Taquary, 128, bairro Cristal). Distribuição de senhas uma hora antes
DNA de DAN
Entre performance, dança, teatro e ritual, o artista curitibano Maikon K passa uma substância no corpo que se parece com uma segunda pele. Assim, metamorfoseia-se em uma espécie de serpente de ficção científica.
Dias 22 e 23, às 12h, na Travessa dos Cataventos da Casa de Cultura Mario Quintana (Andradas, 736)
Shakespeare inédito
Nos 400 anos de morte do grande dramaturgo inglês, esta produção da Liga Profesional de Improvisación (Argentina) cria uma dramaturgia ao vivo, com personagens retirados de diferentes peças do autor.
Dia 24, às 20h, e dia 25, às 18h, no Cemitério da Santa Casa (Avenida Oscar Pereira, 423)
Kil Abreu: "As ruas têm uma dramaturgia que se desenrola o tempo inteiro"
Leia, a seguir, entrevista com o crítico e pesquisador teatral Kil Abreu, que participará, com outros convidados, do seminário As manifestações cênicas de rua – Processo e crítica, dentro da programação do festival. A atividade será no dia 27 de junho, às 20h, na Sala Álvaro Moreyra (Erico Verissimo, 307), com entrada franca.
Em um contexto de crescente ocupação das ruas, como se vê no Brasil desde junho de 2013, o teatro de rua ganha em potencial crítico e político?
Creio que o teatro de rua ou de sala não ganham, por consequência natural, mais potência crítica. É claro que os artistas que sentirem empatia pela ideia de discutir na cena a conjuntura o farão, e não tenho dúvida de que as circunstâncias são provocativas, a ponto de levar os artistas inclusive ao campo da invenção formal, para dar conta de levantar os assuntos e relações novas. Entretanto, por isso mesmo, acho que o que a conjuntura oferece de imediato é uma série de perguntas para quem faz a cena de rua, a maior parte delas relacionadas com a potência da teatralidade em si. Porque é evidente que estamos vivendo como poucas vezes antes um teatro político, diário, nas ruas, independente do teatro apresentado como objeto de arte. E este teatro "informal" é vivo, mobilizador. Por exemplo, as ruas têm protagonistas e antagonistas em pleno movimento (e que têm trocado de posições, em lances por vezes dramáticos); as ruas têm uma dramaturgia que se desenrola o tempo inteiro, têm uma cenografia potente, com símbolos fortes de lado a lado (há todo um repertório de soluções formais nessa área, dos patos da Fiesp às bandeiras vermelhas dos movimentos sociais). Enfim, creio que a crítica, quando se formalizar no teatro "de fato", terá antes de mais nada dialogar e sobreviver dentro deste outro teatro, que já está posto e vivo.
O que torna a rua e os "espaços singulares" (boate, cemitério, etc.) lugares diferentes para a contemplação do teatro?
Na verdade, o que torna a rua espaço singular não é tanto a rua e todos esses lugares para o site specific, se tomados em abstrato. O princípio, para qualquer caso, inclusive da sala tradicional, é que em um teatro vivo o espaço define a dramaturgia. Isso explica o porquê de muitas coisas feitas em site specific virarem perfumaria. A experiência teatral no espaço público aberto tende a naufragar quando o artista utiliza o lugar como decoração e não como elemento narrativo. Então, respondendo objetivamente: o que de fato singulariza o espaço não é a ocupação por si, mas a capacidade de habitação efetiva pela narrativa teatral, ou pelo acontecimento performativo quando não se tratar de narrativa. O que dota de interesse teatral o espaço é esta articulação entre a geografia do lugar e o plano de pensamento que se articula a ela ou nela.
Você identifica vertentes formais ou de conteúdo nas diferentes manifestações de teatro de rua praticadas no Brasil?
Acho que se pode dizer que há recorrências notáveis, dentro de uma cena muito diversa em termos de proposições formais e de pensamento. Desde o teatro de rua tradicional, na roda, até as variações da performance, passando pelo teatro "na rua" e, naturalmente, pelo teatro da vida ordinária, que em geral nem se autointitula teatro, mas que também tem muita importância, como o dos artistas populares que fazem números nas calçadas, os pregadores, os vendedores de feira, os loucos que fantasiam narrativas e tais. Todos esses são teatros e estão aí.