Diz a lenda que ópera é um gênero elitista e de difícil apreciação pelo público leigo. Não é o que tem ocorrido em Porto Alegre, onde as raras apresentações de óperas – encenadas ou em forma de concerto – são ansiosamente procuradas pelo público. Exemplo de constância, o Projeto Ópera na UFRGS chega ao seu quinto ano como um selo de qualidade recompensado com plateias lotadas. A procura pelas senhas das récitas gratuitas é tão ferrenha que já houve casos de bilhetes falsificados, como conta a coordenadora do projeto, Lucia Carpena.
As primeiras duas montagens foram obras representativas do repertório: Dido e Eneias, de Purcell, em 2012, e a fundadora Orfeu, de Monteverdi, em 2013. No ano seguinte, ambas foram reapresentadas. Em 2015, o projeto resgatou a pouquíssimo encenada A Bela e Fiel Ariadne, de Conradi, exemplar do barroco alemão esquecido por longo tempo.
Realizadas em conjunto por professores e alunos das áreas de música, artes cênicas e artes visuais do Instituto de Artes da UFRGS, as montagens se caracterizam pelo contraste: a parte musical é historicamente orientada, ou seja, reproduz fielmente a sonoridade da época em que cada partitura foi escrita; já a encenação inova ao trazer elementos modernos, seja no figurino, nas projeções em vídeo ou na inserção de outros textos no espetáculo.
É o que o público poderá ver na atração deste ano, que ganhou um título composto, Tempos de Solidão – Missa do Orfanato, e chega com duas mudanças. A primeira delas é que as récitas não serão no Auditorium Tasso Corrêa, da UFRGS, e sim no Theatro São Pedro (fruto de um convênio com a Secretaria da Cultura do RS), o que vai dobrar a capacidade da plateia em relação ao ano passado.
A outra inovação é que não será uma ópera, mas uma missa encenada – recurso raro, uma vez que as obras do gênero não têm uma trama. Como transformar a Missa do Orfanato, de Mozart (composta aos 12 anos), em um espetáculo cênico-musical foi o desafio desta equipe de cerca de 90 cantores, atores, músicos da orquestra e técnicos. A direção musical e a regência são de Diego Schuck Biasibetti, que tocará um órgão de tubos.
Assista a trecho de ensaio do espetáculo:
Montagem aborda a solidão atual
Apesar do título, a obra de Mozart não tematiza a orfandade. Ficou conhecida desse modo porque foi composta para a Igreja do Orfanato, em Viena, no final de 1768. A escolha da obra para o projeto da UFRGS foi motivada, entre outros aspectos, pela lembrança da professora Lucia Carpena de uma coreografia do Grupo Corpo, em 1989, que a utilizava como trilha. Ela relata:
– Fiquei absolutamente apaixonada. A escolha também se deu porque se encaixa nos nossos critérios. Precisávamos de uma obra com mais ou menos uma hora de duração, com uma orquestra do tamanho que dispomos (serão cerca de 25 músicos), além de caber nas competências vocais de nossos alunos de canto. E tem que ser uma música linda.
Diferentemente de uma ópera, a missa não tem árias nas quais os solistas possam se destacar. Mas a partitura reserva para o coro momentos com pequenos solos, duetos e trios, como explica Lucia:
– Como não temos solos muito longos, pudemos oferecer esses momentos para diferentes cantores, o que normalmente não se conseguiria fazer. Possibilita que vários alunos se destaquem. Nesse sentido, foi interessante a escolha da missa.
Se a música é de teor religioso, a encenação se despe dessa referência, buscando uma ambientação em meio à cidade moderna, com citações à arte urbana. Essa foi a parte que coube aos alunos de arte dramática, em um processo colaborativo. Partindo da ideia de orfandade presente implicitamente no título original, eles estabeleceram uma relação com o conceito de solidão em suas diferentes manifestações na atualidade. Camila Bauer, que assina a direção cênica, observa:
– Cada um trouxe ideias que remetem ao tema. Pensamos em orfanatos, asilos, centros psiquiátricos, diferentes formas de internação. Chegamos a questões como a solidão dentro de casa, na sala de aula, nas ruas, a solidão do coração do outro que não alcançamos. Tem a ver com as diferentes fases da vida, como nascimento, infância e adolescência.
TEMPOS DE SOLIDÃO – MISSA DO ORFANATO
Sábado, às 20h, e domingo, às 15h e às 18h.
Theatro São Pedro (Praça Marechal Deodoro, s/nº), fone (51) 3227-5100, em Porto Alegre.
Entrada franca, com retirada de senhas na bilheteria do teatro, das 15h até o horário das sessões (esgotadas para a récita de sábado).