Por Clara Corleone
Atriz e escritora, autora de “Porque Era Ela, Porque Era Eu” (L&PM, 2021)
Logo nos minutos iniciais de Blonde, percebi diversos erros sobre a história real de Marilyn Monroe (1926-1962) – por exemplo: ela não tinha permissão para chamar a mãe de “mãe”. Tantas falhas seriam inadmissíveis não fosse um detalhe: o filme não é a adaptação de uma biografia sobre a atriz.
Joyce Carol Oates fez uma escolha ousada ao escrever o livro que deu origem ao filme – e que, aliás, já havia sido adaptado para uma série de mesmo nome com um elenco espetacular. Ao invés de recorrer a fatos, a autora recria uma vida imaginária para a loira, criando um conto de fadas moderno – por vezes, propositalmente piegas, com menções a um “príncipe cintilante” (é sério) – porém sem final feliz. Assim, a autora consegue captar, como poucos, a essência da maior estrela de cinema da história.
Eu esperava que a adaptação de Blonde também seguisse pelo mesmo caminho. No entanto, a obra se empenha em mostrar uma Marilyn “pobre menina abandonada” e, depois, “sofrida mulher abusada por todos”. É espantoso que os realizadores, podendo explorar tantas camadas da persona fascinante da estrela desenvolvidas no livro, optem pelo caminho fácil. É tanto dramalhão que algumas vezes tive a impressão de que uma chorosa Thalía, a estrela das novelas mexicanas, entraria em cena.
Marilyn disse que dormiu com muitos homens, sim, mas fez muitos filmes e uma vez afirmou “eu não quero enriquecer, eu só quero ser maravilhosa”. Conseguiu: não existe, até hoje, estrela mais glamorosa do que ela. Tratar a atriz como uma boba explorada por homens é um desserviço completo à sua memória. Ela sabia exatamente o que estava fazendo. A prova disso é que muitas mulheres deitaram com poderosos dos estúdios para conseguir papéis, mas só uma se tornou Marilyn.
Mesmo assim – e com um roteiro repetitivo e arrastado – Ana de Armas faz chover. É de ficar boquiaberto com as cenas em que ela interpreta Marilyn... interpretando. Especialmente no teste para Nell, do filme Almas Desesperadas, e em uma cena de Quanto Mais Quente, Melhor (por breves segundos, achei que eram imagens do filme original). Ao vermos a potência de Ana de Armas, também conseguimos enxergar a capacidade e o talento de Marilyn, em uma espécie de espelho mágico que nos encanta e entristece: afinal, que rumo teria levado a carreira de Marilyn, que papéis ainda teria interpretado?
Outro ponto positivo do filme é escancarar a misoginia que sempre envolveu e ainda envolve o mito Marilyn. Em cenas cheias de homens observando a atriz com expressões entre regozijo e ódio, me encolhi no sofá. No princípio de sua carreira, um chefão de Hollywood chamava-a exclusivamente de “aquela porca gorda do cabelo de palha”. São os homens os responsáveis por sua ascensão e queda. Os que a levantam e a derrubam, com gosto particular pelo segundo movimento. São os homens que inventam que Marilyn seria burra e muitos deles ainda perpetuam essa ideia até hoje. Logo ela, que escrevia poesia, lia Walt Whitman e James Joyce, tinha longas conversas com Truman Capote, bebericava com Ella Fitzgerald e foi casada com um dos maiores dramaturgos americanos de todos os tempos, Arthur Miller. A ideia generalizada de que Marilyn era uma tola é uma das maiores mentiras fabricadas pelo show business.
O que me incomodou – além de cenas particularmente perturbadoras, que deveriam vir com o aviso de gatilho para aborto e violência sexual – é Marilyn ser retratada apenas como uma mulher desesperada, angustiada e humilhada. Nós não vemos o lado brilhante da artista talentosa e mulher à frente do seu tempo.
Em suas últimas semanas de vida, ela estava contente: havia se mudado há pouco tempo para sua casa própria, filmava com o grande George Cukor (que ela adorava) e seu amigo Dean Martin (que a adorava) e estava no auge de sua forma física. Em seus últimos dias, ela fazia planos para filmar com Frank Sinatra – que lhe dera o cachorrinho com quem morava, batizado ironicamente de Maf, diminutivo de Máfia – e havia combinado de sair para jantar com Marlon Brando na semana seguinte. É uma imagem bem diferente da mulher acabada que vemos no filme.
Marilyn uma vez disse:
– Se você não pode lidar comigo no que tenho de pior, então você pode ter certeza que não merece o meu melhor.
Em Blonde, infelizmente, nós só vimos o pior.