Em um dos causos do Guri de Uruguaiana, o personagem criado por Jair Kobe narra o drama de já ter sido viciado em erva. Erva-mate. Da moída grossa e embalada a vácuo. Durante a narrativa, ele destaca alguns momentos complicados que enfrentou por conta dessa dependência, que o fez tomar chimarrão enquanto dirigia, banhava-se no mar e até mesmo nos momentos de intimidades com Sílvia Helena, sua esposa. Ao final, ele diz ter se libertado do tal vício e que hoje, depois de participar do "Chimarrólatras Anônimos", consome "apenas" dois quilos de erva-mate por dia.
Uma piada divertida com os gaúchos que não perdem a oportunidade de tomar um chimarrão. E essa planta tão apreciada por aqui também é tradicional em alguns países vizinhos, como Argentina e Uruguai. Mas e se a erva-mate realmente fosse um vício e, por conta disso, fosse proibida pelo governo, como se fosse uma droga ilícita? Foi isso que os cineastas Joaquín Peñagaricano e Pablo Abdala Richero pensaram quando escreveram e dirigiram Mateína — A Erva Perdida, que chega aos cinemas nesta quinta-feira (31). Na sexta-feira (1º), a Cinemateca Paulo Amorim, na Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre, terá uma sessão comentada com os diretores uruguaios.
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Segundo Peñagaricano, o filme surge como uma busca pela ficção científica, perguntando como seria o ambiente se algo fundamental no cotidiano fosse mudado. Richero, por sua vez, comentou que o costume de tomar mate vem dos índios Guarani e está presente em todas as esferas da sociedade uruguaia, além de ser algo que caracteriza a nação. O longa da dupla foi vencedor dos prêmios de melhor filme e ator (Diego Licio) no 12º Festival de Cinema da Fronteira e exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
A trama se passa no ano de 2045 e mostra um Uruguai distópico, em que a erva-mate é expressamente proibida de ser consumida no país. Porém, dois amigos não querem mais viver nessa realidade triste, que não tem mais o ronco da bomba presente. Assim, quando o cerco se fecha no país, Moncho (Licio) e Fico (Federico Silveira), que são vendedores ilegais da planta, precisam iniciar uma cruzada rumo ao Paraguai para contrabandear o insumo e garantir a mateada.
Durante a viagem, ambos se transformam em heróis por acaso e, com o apoio popular, a dupla vai conseguindo avançar em sua jornada quixotesca. E essa ternura e esperança fazem desse road movie uma peça única, imaginando como seria o mundo se algo tão enraizado na cultura de um povo fosse simplesmente arrancado dela. Uma comédia que ri do absurdo.
Mundo quebrado
"Por que as pessoas têm uma casa? Por que têm um pátio, um fogão, um cachorro? Para tomar uns mates depois. As coisas mais belas da vida a gente faz para tomar uns mates depois", diz o personagem Moncho, enquanto ele e Fico estão escondidos em um terreno baldio, apreciando aquela mistura de erva-mate e água quente.
Mateína mostra que o povo do Uruguai que não desistiu de consumir o produto o faz às sombras, como viciados. Seja em ferros-velhos ou em lugares abandonados — o pedido de um mecânico por um pouquinho de erva-mate para Moncho é hilário, imaginando como seria alguém com abstinência do produto. Mas a venda é complexa, sempre com muito cuidado para não serem pegos pela polícia.
E a dupla de contrabandistas faz as entregas pela cidade, deixando os pacotinhos para os clientes e dando ao público o vislumbre de como é a realidade daquele lugar. Mesmo que se passe em 2045, a bela paisagem interiorana é igual a de agora — como se o mundo tivesse parado, deixado de evoluir, perdido a graça sem a erva-mate. As pessoas não se movem, apenas observam o passar dos dias, e alguns aguardam pacientemente a entrega do insumo para que, assim, reencontrem um pouco da alegria de viver.
A câmera estática de Peñagaricano e Richero acompanhando o velho carro branco de Moncho e Fico cruzando as paisagens mostra que eles são os únicos que se movimentam em um Uruguai parado no tempo. A produção também se utiliza do rádio como o meio de comunicação principal no país, para o bem e para o mal. Enquanto a programação pró-governista critica e condena o uso da erva-mate, a emissora comunitária apoia o consumo, pede liberdade para o povo e encoraja os heróis improváveis. É a batalha, pelas ondas sonoras, da opressão contra a rebeldia.
— O herói uruguaio José Artigas (1764-1850) tem um grande paralelismo com nossos protagonistas: ele não queria ser o "pai da pátria", mas foi seguido e ajudado pelos habitantes do campo — declarou Richero em comunicado à imprensa.
A coprodução de Uruguai, Brasil e Argentina é curta, apenas 82 minutos de projeção, mas o tempo é suficiente para contemplar as lindas paisagens uruguaias, fazer piadas com os países irmãos — até brincadeira com É o Tchan! aparece na tela — e provocar as proibições e influências das corporações internacionais nos países latino-americanos. Mas, principalmente, Mateína mostra que a união do povo em prol de um propósito é uma chama de esperança — que pode ser usada, inclusive, para esquentar a água e preparar um bom mate.