O segundo longa-metragem da cineasta gaúcha Cristiane Oliveira, A Primeira Morte de Joana, tem sua estreia nesta sexta-feira (22) em um dos festivais de cinema mais tradicionais da Ásia: International Film Festival of India (IFFI). Em sua 51ª edição, a mostra é realizada no estado indiano de Goa, com início no último sábado (16) e se estendendo até o dia 24 de janeiro.
Com seu longa de estreia, Mulher do Pai (2016), Cristiane conquistou projeção e recebeu o prêmio de melhor direção de ficção do 18º Festival do Rio. Agora, em um contexto pandêmico, começa a circular seu novo filme em eventos internacionais — começando pela Índia.
— É uma alegria por ser um festival em um país que tem uma tradição de cinema muito forte. É uma oportunidade muito gostosa: ver como o filme ressoa em outras culturas — celebra Cristiane.
Realizado pela Okna Produções e Epicentre Films (produtora francesa), A Primeira Morte de Joana ainda não tem data para chegar ao público brasileiro. A expectativa da Okna é que o lançamento seja ainda em 2021. Enquanto isso, Cristiane já planeja seu terceiro longa, que se chamará Até que a Música Pare e terá um casal de idosos como protagonista.
O segundo filme da diretora é protagonizado por Joana (Letícia Kacperski), 13 anos, e ambientado no ano de 2007. Passando por uma fase de descobertas e curiosidades, a jovem quer descobrir por que sua querida tia-avó Rosa morreu aos 70 sem nunca ter namorado alguém. Joana vive com sua mãe, Lara (Joana Vieira), e sua simpática avó, Norma (Lisa Gertum Becker), que trabalham vendendo cucas.
Enquanto sua avó é mais doce e vívida, a mãe é mais bronca e fechada — vale destacar o excelente trabalho de Joana Vieira aqui, dando vida a uma personagem que pode parecer bastante familiar —, carregando alguns preconceitos de gênero. A jovem não consegue desenvolver com a mãe um diálogo franco sobre o que sente.
Joana tem Carolina (Isabela Bressane), também com 13 anos, como seu alicerce e parceira de investigação. Através de sua melhor amiga, ela passa a ser despertada para uma perspectiva diferente sobre si mesma. Ao mesmo tempo, a jovem percebe que as mulheres da sua família também têm os seus segredos.
— Joana está nesse espaço em transformação, no início da adolescência, em ebulição. Parece que a tia tem um segredo e se ela desvendá-lo, pode ser que entenda a si mesma. Assim, ela vai descobrindo mais sobre as mulheres da família. Como questões diversas atravessam a construção dos afetos, como o preconceito de gênero e orientação sexual — explica a diretora.
Escrito por Cristiane em parceria com Silvia Lourenço, o ponto de partida para o roteiro de A Primeira Morte de Joana foi uma Tia Rosa da vida real. A cineasta conta que ela conheceu uma senhora que faleceu aos 70 anos sem nunca ter namorado alguém.
— Era uma pessoa super ativa artisticamente e socialmente. Era alguém que fugia do estereótipo do que se esperava de uma mulher de sua época. Essa história que me fazia pensar em uma coragem de ser quem você é. Ao mesmo tempo ficava me questionando: o que levou ela a isso? Nunca ter compartilhado sua história com outra pessoa — relata.
Desenho geográfico
Assim como Mulher do Pai, que foi rodado na Campanha gaúcha, Cristiane volta a promover um deslocamento do olhar para além da metrópole gaúcha. A Primeira Morte de Joana foi filmado em Osório e Santa Antônio da Patrulha. O desenho geográfico que se cria no filme se relaciona com as memórias que a diretora tem da região. Ela escolheu ambientar a trama em 2007 por ser próximo do ano de inauguração do Complexo Eólico de Osório.
— Era um lugar que sempre me chamou a atenção pelo contraste de lagoas com o morro de mata virgem (Morro da Borússia). De repente, a região começou a ser rasgada por essas formas metálicas — recorda. — Os cataventos eram quase inalcançáveis na minha memória em termos de distância, para além da rodovia.
Na trama, os cataventos são observados a distância por Joana como um lugar muito longínquo. O parque eólico, então, acaba virando um local de travessia simbólica no filme.
Outras referências locais que aparecem no longa são as influências da colonização alemã e da cultura de matriz africana na região:
— Esse cruzamento de culturas me remeteu a um sincretismo que eu queria trabalhar. Os afetos também são atravessados pelas religiões e por todas as questões morais.
Entre segredos e descobertas
Com diálogos esparsos e silêncios introspectivos, A Primeira Morte de Joana traz belas imagens dos cenários naturais de Osório como parte de uma narrativa de inquietação. Cristiane traz os cataventos para ilustrar a força transformadora e dramática que é o vento na história. Também há o lago, remetendo à estagnação a ser superada.
É com muita sensibilidade que a química entre Joana e Carolina é construída. Juntas em cena, elas transmitem uma hesitação de quem ainda está se descobrindo, uma tensão com seus sentimentos contidos.
— Nessa faixa etária começa a ficar claro, especialmente para as mulheres, como o nosso corpo é determinante. Nosso corpo pode ser tanto uma janela de conexão com o mundo, quanto pode ser uma chave para nos fechar. Muitos entraves vão se criando nessa faixa etária por conta desses estereótipos, desses preconceitos, dessas expectativas sociais. Joana sente isso a medida que vai investigando sua tia e questiona todas essas barreiras que vão sendo colocadas para ela. Mas ela não se satisfaz com o que vê, vai criando seu universo particular para achar suas respostas — explica Cristiane.
Para a diretora, Joana precisava olhar para os seus segredos e, assim, se permitir viver:
— Assim como ela vai descobrindo que as mulheres ao redor dela vivem também uma intimidade ao seu modo, ela vai construindo a própria forma dela de ser mulher. Não existe um manual para isso: vai sendo construindo no embate cotidiano.