Apesar do sucesso em outras décadas, alguns filmes não sobrevivem ao teste do tempo. Não são raras as produções que envelhecem mal e perdem o sentido ao longo dos anos.
O mundo não ficou mais chato: cenas que eram normatizadas em outros contextos acabaram se tornando problemáticas diante do olhar contemporâneo. Insira aí transfobia, gordofobia, sexismo, machismo, reforço de esteriótipos, cultura do estupro, entre outras polêmicas.
Confira alguns exemplos de filmes que envelheceram mal:
Ace Ventura - Um Detetive Diferente (1994)
A comédia projetou Jim Carrey para saltos ainda maiores. Há um momento chave do filme em que o detetive de animais descobre que uma policial é um ex-jogador de futebol americano. Ao descobrir a verdade, a reação de Ace é de repulsa, com direito a vômito e a escovar os dentes desesperadamente. Quando policiais de um departamento ficam sabendo do mesmo, todos cospem ao mesmo tempo.
Como em muitas representações fictícias de pessoas transgênero daquela época, o sentimento predominante na cena é de repulsa a ponto de segurar o nariz. Com o passar dos anos, o filme é bastante citado pela transfobia das cenas.
Gatinhas e Gatões (1984)
Filmes de estreia do diretor John Hughes (Clube dos Cinco e Curtindo a Vida Adoidado), a comédia romântica adolescente se consolidou como um clássico vespertino da TV aberta. Na teoria, o filme aborda uma história leve protagonizada por Sam (Molly Ringwald). Ela se apaixonada por um colega da escola, mas o rapaz é comprometido com outra garota. Sam ainda vê seu aniversário ser esquecido por conta do casamento da irmã mais velha.
Porém, o que era para ser doce é bastante amargo. Há problemas como masculinidade tóxica e a estereotipação ofensiva de um personagem asiático. Perto do final, há uma cena em que uma personagem fica bêbada, e o namorado dela a "repassa" para outro jovem.
Um artigo de 2018 do site VOX, que apontava problemas do filme, como a glorificação da cultura do estupro, foi publicado pela própria atriz Molly Ringwald no Twitter. "Eu não poderia concordar mais", escreveu no post.
O Amor é Cego (2001)
Nesta comédia romântica, o protagonista vivido por Jack Black é hipnotizado e passa a ver as pessoas pela beleza interior. Ele conhece uma mulher obesa e encantadora por quem se apaixona, embora ele só a enxergue magra.
Com o passar do tempo, o filme foi duramente criticado por seu conteúdo gordofóbico. A personagem Rosemary passa por situações caricatas, como quebrando uma cadeira ao sentar e se descontrolando durante as refeições. Os amigos do protagonista enxergam a mulher em sua forma verdadeira e vivem caçoando da situação.
...E o Vento Levou (1939)
Vencedor de oito estatuetas do Oscar, incluindo melhor filme, ...E o Vento Levou se consagrou também como uma das maiores bilheterias de todos os tempos. No entanto, a representação de escravos conformados e seus heroicos proprietários é alvo de críticas até hoje.
A partir das manifestações que ocorreram nos Estados Unidos após a morte de George Floyd, em 25 de maio, houve pedidos de reforma das forças de segurança e da remoção de símbolos do legado racista, incluindo alguns monumentos. Isso inclui ...E O Vento Levou.
Autor de 12 Anos de Escravidão, o roteirista John Ridley escreveu em um artigo publicado no jornal Los Angeles Times que ...E o Vento Levou deveria ser retirado das plataformas de streaming porque "não fica apenas aquém da representação, mas ignora os horrores da escravidão e perpetua alguns dos estereótipos mais dolorosos".
A HBO Max chegou a remover o filme de sua plataforma para publicá-lo novamente com uma introdução apresentada pela pesquisadora de cinema Jacqueline Stewart. Ela alerta que a produção de 1939 pode ser desconfortável e dolorosa, mas que ainda assim precisa estar disponível em sua forma original para poder gerar discussões.
— ...E o Vento Levou apresenta o sul como um mundo de graça e beleza, sem reconhecer as brutalidades do sistema de escravidão em que este mundo se baseia. O tratamento que o filme faz deste mundo através de uma lente de nostalgia nega os horrores da escravidão, bem como seus legados de desigualdade racial — diz a pesquisadora.
Em um comunicado enviado à AFP, a HBO afirmou que "estas representações racistas estavam erradas na época e estão erradas hoje, e sentimos que manter este título disponível sem uma explicação e uma denúncia dessas representações seria irresponsável".
Beleza Americana (1999)
Vencedor de cinco estatuetas do Oscar, incluindo a de Melhor Filme, Beleza Americana equilibra temas como existencialismo, sexualidade, homofobia e materialismo. É uma sátira à vida suburbana branca dos Estados Unidos.
Bastante elogiado na época de seu lançamento, Beleza Americana foi escolhido em 2005 pelo site Premiere como um dos "filmes mais superestimados de todos os tempos". Ao comentar os 20 anos do longa, a revista Time indicou que Beleza Americana foi "trabalhado de maneira simplista e sem alma", além de "polido para um gosto insípido".
Em 2012, o site Complex incluiu Beleza Americana em uma lista dos "10 filmes de mensagem mais forçada de todos os tempos". O site IndieWire escreveu, ao comentar os 15 anos do filme: “Vítima, talvez, do hype exagerado, o filme de Sam Mendes de maneira alguma é ruim, mas é difícil lembrar por que exatamente (...) todo mundo enlouqueceu com o filme”. Já o site Upprox o classificou como "o pior vencedor do Oscar da era moderna".
Beleza Americana ainda sucumbe à sensibilidade moderna: apresenta ideias redutivas sobre pedofilia, em que um homem branco e privilegiado de meia-idade sente luxúria por uma adolescente — algo que passa longe de questionamento. Outro ponto periclitante é o tratamento dado a um personagem gay, cuja revelação traz consequências fatais. Os personagens distribuem falas vagas e pretensiosamente filosóficas ("Às vezes, há tanta beleza no mundo que eu não posso resistir").
A atuação oscarizada de Kevin Spacey é um dos destaques de Beleza Americana, mas fica obliterada pelas acusações de assédio que ele recebeu mais tarde. Em entrevista ao site da revista The Hollywood Reporter, a atriz Thora Birch comentou: "É inevitável pensar ‘ótimo, agora temos uma mancha neste filme’. Mas isto não deveria ser refletido no filme. Quem tem culpa? Kevin. E isso não tem nada a ver com Beleza Americana".