Ao longo de quase quatro horas na manhã desta terça-feira (20), o sequestro de um ônibus com passageiros prendeu a atenção do Brasil. Diante das imagens transmitidas ao vivo pela TV, o episódio lembrou outro sequestro de um coletivo que também teve como cenário o Rio de Janeiro, em 2000, mas encerrado de forma trágica. O caso deu origem ao documentário Ônibus 174, filme de 2002 que revelou o cineasta José Padilha (de Tropa de Elite).
Leia reportagens publicadas em ZH sobre o documentário, de autoria do jornalista Roger Lerina. Em 2008, a história foi encenada como ficção, no longa-metragem Última Parada 174, dirigido por Bruno Barreto.
Na tarde de 12 de junho de 2000, 35 milhões de brasileiros embarcaram em uma viagem direto ao coração da violência urbana e da exclusão social. O documentário Ônibus 174 recupera a história do assalto que virou sequestro – e que aterrorizou durante cinco horas os passageiros de um coletivo no Rio, transmitido ao vivo pela TV em todo o país. São 128 angustiantes minutos de projeção, dos quais emerge a certeza de que esse expresso de horror ainda não chegou ao seu destino.
O diretor José Padilha foi um dos telespectadores que acompanharam o desenrolar do incidente com o ônibus que saiu naquele dia da favela da Rocinha e parou no Jardim Botânico, tomado pelo assaltante Sandro do Nascimento, de 21 anos, que tomou os passageiros como reféns depois da fuga do motorista. Do meio da tarde até o começo da noite, desenrolou-se a negociação entre o marginal e a polícia, marcada por decisões desastradas por parte das autoridades e ameaças de morte aos sequestrados.
O desfecho foi trágico como todas as circunstâncias do caso: uma refém foi morta em conseqüência de uma ação equivocada da polícia, e Sandro morreu asfixiado na viatura que o levaria até a delegacia. O Brasil não desgrudou o olho da TV, transido de tensão diante da possibilidade iminente de um desfecho sangrento. O carioca José Padilha assistiu ao incidente pelo canal GloboNews e ficou impressionado.
O produtor do documentário Os Carvoeiros (1999) achou, então, que poderia contar uma outra história a partir das imagens do evento carioca que tanto o impactaram. Ao pesquisar em imagens de TV, notícias de jornal e documentos diversos, Padilha realmente desvendou um outro drama, que antecedeu e condicionou os atos daquele fatídico Dia dos Namorados de 2000: o da infância abandonada e da ausência de inserção social, realidade da qual Sandro do Nascimento foi mais uma das vítimas.
O diretor selecionou entre as mais de 70 horas de material televisivo cenas que pudessem recontar o sequestro. Enquanto se desenrola esse núcleo narrativo, Ônibus 174 vai desdobrando os antecedentes e as conseqüências do fato por meio de entrevistas com ex-reféns, policiais que participaram da ação e familiares e assistentes sociais ligados a Sandro do Nascimento.
José Padilha amarra desse modo a trajetória de vida do bandido com a realidade do Brasil dos deserdados, ilustrando de maneira quase didática a perversa lógica de exclusão social que propicia o nascimento dos “Sandros”. O filme mostra imagens do sequestrador brincando em frente à Igreja da Candelária, um dia antes do massacre que em 1993 tirou a vida de sete meninos de rua no Rio. Sobrevivente da chacina, Sandro tentou se endireitar – chegou a prometer à mãe adotiva que ficaria famoso e apareceria na TV –, mas a sina da vida marginal não iria abandoná-lo.
Vencedor do Festival Rio BR 2002 de melhor documentário, Ônibus 174 – exibido na seção World Cinema do Festival de Sundance, nos Estados Unidos – expõe também a ineficácia do sistema carcerário brasileiro e a falta de estrutura da polícia carioca, cuja ausência de comando no episódio só não custou mais vidas por milagre. O número da linha mudou de 174 para 158, mas o percurso ainda existe – e Ônibus 174 surge como testemunho de uma tragédia que não deve ser esquecida e pode se repetir a qualquer momento, ainda que se queira apagar os nomes e a existência de seus protagonistas.
Confira a entrevista com o cineasta José Padilha feita à época:
“O grande culpado foi o Estado”
Como surgiu a ideia de filmar o incidente do ônibus 174?
José Padilha: Depois de ver o sequestro ao vivo, concluí que o material de arquivo das TVs brasileiras era incrível. Em seguida, descobri que Sandro, o sequestrador do ônibus, era um dos sobreviventes da Candelária. Aí, percebi que a sua história era socialmente significativa, e resolvi fazer o filme.
Você acompanhou pela TV o desenrolar do sequestro. Qual foi sua reação diante das impactantes imagens transmitidas para todo o Brasil?
Reagi como a maioria dos brasileiros: fiquei espantado com os erros da polícia e com o fato de um evento tão violento ser transmitido ao vivo.
Posso apenas afirmar que a solução dos problemas brasileiros, o da violência inclusive, depende de uma melhor distribuição de renda e do crescimento do país.
JOSÉ PADILHA, AUTOR DO DOCUMENTÁRIO "ÔNIBUS 174"
O filme Ônibus 174 revela o lado pouco conhecido dessa tragédia: a verdadeira história de vida do sequestrador Sandro do Nascimento. Você acredita que o seu documentário vai mudar a compreensão das pessoas a respeito desse episódio?
Achava que o Sandro precisava ser explicado, e tentei construir essa explicação por meio do filme. Espero que o entendimento das origens do Sandro mude a compreensão das pessoas com relação às causas do episódio e da violência urbana no Brasil.
A transmissão ao vivo em rede nacional do desenrolar do drama dentro do ônibus influenciou a ação tanto de Sandro quanto da polícia. Como você avalia a ação da televisão nesse caso?
A televisão só transmitiu porque a polícia foi ineficiente em isolar o local. Mesmo
assim, penso que as TVs deveriam ter considerado a violência da situação antes de decidir transmitir ao vivo. Afinal, devido ao horário, sempre haveria o risco de crianças terminarem por assistir a cenas extremamente violentas.
Um dos grandes méritos narrativos do documentário é costurar de maneira exemplar a história pessoal do Sandro do Nascimento com a realidade coletiva da exclusão social no Brasil. O que é preciso para deter a lógica perversa que não para de produzir “Sandros”
no Brasil?
Sinceramente, não sei a resposta. Posso apenas afirmar que a solução dos problemas brasileiros, o da violência inclusive, depende de uma melhor distribuição de renda e do crescimento do país.
Algumas pessoas diretamente envolvidas, como o comandante da polícia que chefiou as negociações com o sequestrador, não deram entrevistas em Ônibus 174. O policial se recusou a falar?
Documentários são feitos com pessoas convidadas pelo cineasta. Convidei o coronel Penteado, mas ele preferiu não participar do projeto. O mesmo fez o ex-governador Anthony Garotinho.
Como você chegou ao “assaltante profissional” que aparece no filme?
Por meio de conhecidos do Sandro que moram na favela da Nova Holanda.
Você, como diretor, se exime de emitir um julgamento definitivo sobre o fato –
ainda que fique evidente seu esforço em jogar luz a respeito das circunstâncias que transformaram Sandro em um marginal. Qual a sua opinião pessoal sobre o sequestrador e sobre a ação da polícia no episódio?
Acho que o filme demonstra que o Estado foi o maior responsável pela tragédia. Por um lado, tratou o Sandro com extrema violência desde que ele passou a viver nas ruas. O Estado brasileiro pode ser considerado parcialmente culpado pelas atitudes violentas tomadas pelo Sandro dentro do ônibus, incluindo aí o fato de ele não ter se entregado. E o Estado também não consegue organizar uma polícia competente.