Exibido em uma emotiva sessão em homenagem ao ator Leonardo Machado, o longa Legalidade, dirigido por Zeca Brito, é um tipo de produção que tem bastante potencial para ser um sucesso nacional de bilheteria aos moldes de O Tempo e o Vento, filme com o qual guarda algumas semelhanças em certas escolhas das quais ainda falaremos. Ao reconstruir os 14 dias do movimento da Legalidade, em agosto e setembro de 1961, Brito mescla ficção e realidade, os fatos reais e um triângulo amoroso fictício, e constrói uma narrativa que tenta equilibrar, com graus de sucesso variados, o épico e o melodrama (aqui usado como sinônimo para definição de um gênero, e não como adjetivo).
Legalidade não se limita aos corredores e porões do Palácio Piratini, mas abre com Jânio Quadros arrumando a mala e se preparando para sua renúncia tresloucada, que precipitará o Brasil em uma crise. Já nas cenas seguintes, a narrativa acompanha a jornalista do Washington Post Cecília Ruiz (a atriz e cantora Cleo Pires, que agora assina apenas Cleo) subindo as escadarias do palácio Piratini até a sala em que Leonel Brizola (Leonardo Machado) faz um discurso provocativo em pleno dia do soldado em uma cerimônia que logo é abandonada pelos comandantes militares.
Estão estabelecidas aí as dinâmicas que presidem o filme, oscilando entre Brizola organizando um movimento de resistência para garantir a posse do vice eleito, seu cunhado e correligionário João Goulart, então em viagem à China, e a personagem de Cleo como um fio a unir a trama fictícia que também permeia o filme. A jornalista não demora a se envolver com Tonho, um jovem repórter da Última Hora vivido por José Henrique Ligabue (uma versão amalgamada de jornalista que estiveram de fato na cobertura do evento, como Tarso de Castro e Flávio Tavares).
Um triângulo amoroso se desenha quando, motivado pela escalada da tensão, o antropólogo e militante comunista Luís Carlos (Fernando Alves Pinto, em boa e equilibrada atuação), irmão de Tonho, vai procurar seu amigo Leonel Brizola para ajudar a organizar a resistência a um cada vez mais iminente ataque aéreo ao Palácio do Piratini. Luis Carlos também teve um breve mas intenso romance com Cecília semanas antes, em uma conferência Pan-Americana realizada no Uruguai na qual Luís Carlos acompanhava Brizola, então dirigente da delegação brasileira. A presença de Cecília nas duas oportunidades não é coincidência e reside aí um dos elementos de virada do roteiro mais adiante.
Produção da Prana Filmes, Legalidade é um primor de reconstituição de época, tirando proveito de locações reais como o próprio Piratini, cenário da maior parte do filme. Um jogo interessante é estabelecido entre as movimentações do Brizola de Leonardo Machado e o imaginário da formação gaúcha expresso nos murais de Aldo Locateli presentes no palácio, muitas vezes enquadrados como elementos pontuais à narrativa.
Realizado com um orçamento de US$ 3 milhões, gigantesco para o padrão do cinema gaúcho, mas modesto para o escopo da produção, o filme aposta em planos mais fechados e em ricas imagens de arquivo para substituir locações e momentos em que a reencenação seria dificultada pelo custo da produção. Ao mesmo tempo, é um recurso que não funciona para todos os espectadores, já que a imagem de arquivo retira o público da imersão ficcional ao mostrar o Brizola de verdade, em contraposição ao da ficção. A propósito, esse é um dos méritos do filme. Em tempos de uma revisão histórica na marra esboçada pela nova onda conservadora, Legalidade não se esconde em meios-termos. Seu retrato de Brizola é, declaradamente, o do herói que o momento exigia.
Há ainda uma terceira linha narrativa, desenrolada no presente, na qual a personagem Blanca (Letícia Sabatella), filha de Cecília, pesquisa em vários arquivos em 2004 informações sobre mãe que quase não conheceu. Embora pareça deslocada, mantém o interesse pelo bom trabalho de Letícia e pela presença de Sapiran Brito (pai do diretor) como uma versão mais velha de Brizola.
Em seu último papel, Leonardo Machado se sai particularmente bem nas cenas em que Brizola se dirige ao público pela cadeia de rádio montada para articular a reação popular, mas às vezes parece oscilar entre ser ele mesmo e o personagem nas cenas mais íntimas com sua família no palácio.
O elemento mais divisivo da composição é a opção dos roteiristas (o próprio diretor e seu colaborador Léo Garcia) de usar o triângulo amoroso ficcional como elemento estrutural. É neste momento, quando se afasta da rigorosa pesquisa com que conduziu as cenas da trama maior, que o filme aposta em uma estética de dramaturgia televisa, com diálogos em planos e contraplanos e com um tom notadamente mais artificial do que o restante do filme.
No debate realizado na manhã desta segunda-feira (19), Zeca Brito defendeu essa escolha como um elemento para dialogar com uma fatia mais ampla do público, no que pode ter razão dadas as manifestações de apreço que o longa recebeu da plateia e o quanto os espectadores na noite de exibição pareceram apreciar o resultado.
Filme político com toques de telenovela em um momento particularmente conturbado do Brasil, não seria de surpreender se Legalidade conseguisse mesmo atingir, apesar de alguns de seus problemas, uma nota sensível no coração de boa parte do público.