Ao formular seu clássico conceito de sociologia "homem cordial" para explicar o temperamento do brasileiro, Sérgio Buarque de Holanda não estava se referindo ao sentido mais conhecido que a palavra foi adquirindo, o de afabilidade. O que Buarque de Holanda tinha em mente, na verdade, era um homem dominado pelos impulsos e pelos caprichos do coração, e, portanto, alguém capaz de passar com rapidez do amor ao ódio, da afetuosidade à hostilidade. Ao dar o título de O Homem Cordial para seu longa-metragem que estreou na primeira noite do Festival de Gramado, na sexta-feira (16), o diretor Iberê Carvalho propõe uma clara chave de leitura, mas não se limita à simples encenação do postulado de sociólogo, também faz um registro urgente e contemporâneo da atual polarização violenta do debate público e de como essa dualidade é alimentada pela fornalha das redes sociais.
Com roteiro de Pablo Stoll, O Homem Cordial é o retrato de algumas horas na vida do músico Aurélio Sá (Paulo Miklos). Vocalista de uma banda punk de sucesso nos anos 1980, ele e alguns de seus companheiros de grupo estão ensaiando um retorno aos palcos quando um vídeo protagonizado por Aurélio viraliza. Ele intervém numa confusão na qual um menino está sendo quase linchado, acusado de furto. Na sequência, em circunstâncias que não ficam claras a não ser no final do filme, o menino foge, perseguido por um policial militar. O PM acaba morto e uma onda de indignação popular transforma Aurélio no vilão da história, comprometendo um show que o grupo fazia e dando início a uma noite vertiginosa de paranoia e agressividade.
Aurélio passa a ser filmado por estranhos e tem sua localização compartilhada nas redes. É alvo de um YouTuber que se aproxima com tom amistoso para depois provocar o initerlocutor com um celular apontado para a cara da vítima. A certo momento, é abordado por uma jornalista que quer saber o paradeiro do menino que deu origem a tudo, desaparecido e esquecido no meio da radicalização crescente. Ao lado dela, Aurélio vai retomar contato com um antigo integrante da banda, o percusionista Béstia, hoje dono de um bar na periferia onde o menino morava.
Nessa jornada, Aurélio, um homem branco, famoso e pertencente a um extrato privilegiado da sociedade brasileira, é gradativamente confrontado com os riscos de ser negro na periferia, algo que o menino que ele defendeu sabe. Em uma cena simbólica das intenções do filme, Aurélio é chamado, no bar de Béstia, para subir no palco e enfrentar uma jovem negra num improviso de slam. Mesmo sem saber nada do assunto, ele sobe, e começa um discurso longo e emotivo sobre ter reencontrado o antigo amigo, um discurso que é interrompido pela moça que começa suas rimas e o faz calar. Quando é sua vez, Aurélio não tem versos a dizer.
O Homem Cordial é uma espécie de Depois de Horas filmado com a urgência e a câmera próxima de um Filho de Saul. O enquadramento segue Aurélio de modo epidérmico, flagrando o fluxo inconstante de reações despertadas pela situação – e oferecendo a Paulo Miklos, no processo, a oportunidade de uma grande atuação. A figura de Thaide também se destaca, mas é na montagem e na edição que o filme arrasta o espectador de consequência em consequência, de escalada em escalada até um desenlace violento. Mas depois da explosão de agressividade, o filme retrocede para finalmente apresentar a verdade do que até ali havia sido apenas mencionado, a morte do policial e a abordagem do jovem acusado de roubo. E nessa sequência final, ele sumariza todos os elementos que até ali haviam sido jogados com urgência e rapidez devido ao próprio ritmo do filme. O resultado é de cortar o coração e de fundir a mente do espectador.
Como Paulo MIklos no palco do slam, o filme encerra e nos devolve a palavra.
E não sabemos usá-la.