Competidor na mostra de longas estrangeiros, a produção chilena Perro Bomba chegou a Gramado, na noite de quinta-feira (22), tendo na bagagem prêmios nos festivais de Guadalajara, Málaga e Toulouse. A exibição do filme mostrou por quê. Sua estética crua e documental, aliada à coragem para abordar de frente uma questão social profunda que também encontra ecos no Brasil, tornaram o filme uma das boas surpresas do Festival.
Dirigido por Juan Cáceres e estrelado pelo haitiano imigrado para o Chile Steevens Benjamin, numa interpretação que consegue ser impactante e minimalista ao mesmo tempo, Perro Bomba é um drama que retrata as dificuldades vividas por imigrantes haitianos no país.
No filme, Steevens (personagem com o mesmo nome de seu intérprete) é um jovem haitiano já bem adaptado a sua vida no Chile. Tem um emprego regular em uma fábrica de tijolos, vive acolhido na casa de uma família de amigos e trocou o bem composto corte reto da maioria de seus compatriotas por uma cabeleira com dreads aplicados. Se a vida está melhor que no Haiti, nem tudo vai bem. O novo penteado o leva a ser algo malvisto pelos mais velhos a rotina de trabalho é estafante e seu chefe (Alfredo Castro, de Tony Manero, em ótima interpretação) é um babaca racista.
Chega então do Haiti um amigo de Steevens, Junior, filho da família que acolhe o protagonista. Servindo de cicerone para o compatriota, Steevens percorre as ruas de Santiago e o indica para uma vaga em seu mesmo emprego, e é aí que começam seus problemas. Júnior é um trabalhador mais devagar, aprende de modo mais lento e é, portanto, alvo de insultos raciais e reprimendas rudes do chefe. Quando uma brincadeira organizada por colegas de trabalho é interrompida por declarações particularmente racistas do Chefe, Steevens explode e agride o homem fisicamente.
Preso e depois liberado, seu status, contudo, mudou completamente. O caso foi parar na imprensa, açulando ainda mais a raiva e o racismo que muitos nutrem contra os imigrantes (situação que espelha o que se vê também no Brasil, também palco recente de imigrações de haitianos e senegaleses). A comunidade de imigrantes, assustada com a repercussão e querendo evitar problemas, expulsa Steevens de seu convívio. Isolado, errante e desempregado, ele começa a fazer pequenos serviços para conseguir sobreviver enquanto tenta evitar a extradição com a ajuda da advogada de uma ONG (Blanca Lewin, de En La Cama).
"Perro Bomba", explicou o diretor Juan Cáceres no debate na manhã seguinte à exibição, na sexta-feira, é uma gíria usada por criminosos de alto status para definir os peixes pequenos que realizam serviços ilegais para sobreviver e são, normalmente, bucha de canhão. Se a sinopse pode dar a entender um filme com ritmo de thriller, o que desconcerta é o modo lento e livre como o filme aborda essa temática.
Declaradamente influenciado pelas experiências do "cinema-verdade" dos anos 1960, Cáceres diz não ter elaborado um roteiro para a primeira metade do filme, planejando um pouco melhor apenas a segunda parte, a da derrocada de Steevens. A câmera segue Steevens e seu mundo com um olhar documental, os diálogos entre ele e seus familiares e compatriotas são improvisados. E de tempos em tempos, quase como elementos musicais que pontuam o estado de humor cambiante do protagonista, o longa interrompe a narrativa para apresentar um grupo ou artista musical interpretando um número nas ruas da cidade. Desconexo a princípio, este elemento logo se encaixa na proposta de registro do filme, dando força a seu elemento documental.
Ancorado na ótima interpretação de Steevens Benjamin, ator que foi descoberto em uma peça teatral com o próprio Alfredo Castro quando trabalhava em um terminal rodoviário, o filme se monta à sua volta, aprofundando o desespero do personagem sem partir para fáceis soluções policialescas. Apesar de encerrar de modo abrupto, Perro Bomba é um documento cinematográfico relevante sobre um tema ainda pouco discutido. Poderia ser um soco, mas é, antes disso, um alerta.