Se há algum elemento comum unindo produções andinas vistas recentemente no Festival de Cinema de Gramado é uma vontade declarada de pôr a cultura local e suas especifidades em cena. Foi o que fizeram exemplares tão díspares quanto o mitológico Averno, produção boliviana que passou por aqui em 2018. É o que faz o alegórico e delirante filme equatoriano A Son of Man, que inaugurou a mostra de longas estrangeiros deste ano. E é o que faz, a seu modo, o thriller melancólico Muralla, produção boliviana exibida na noite de segunda-feira (19).
Com direção de Gory Patiño e estrelado pelo expressivo ator Fernando Arze, Muralla conta a história de Jorge, ex-goleiro de futebol do popular clube boliviano San José de Oruro. Em seus dias de jogador, Jorge, apelidado "Muralha", participou da final de campeonato em 1995 na qual o San José conquistou um título depois de 40 anos de jejum e chegou a defender um pênalti em campo (aliás, isso ocorreu na vida real, mas com o goleiro Carlos Laime em vez do fictício Jorge). No presente, já aposentado, Muralha ganha a vida como motorista de micro-ônibus, tem um filho no hospital dependendo de um transplante e complementa o parco dinheiro que recebe com expedientes escusos como vender combustível roubado.
Como a situação do filho se agrava, Muralha aceita a sugestão de seu contato para começar a prestar serviços mais arriscados, sequestrar pessoas aleatórias e vendê-las para uma quadrilha de traficantes. O dinheiro que coletar será usado para subornar um médico e passar o filho na frente da lista de transplantes. Quando o recalcitrante Muralha deixa seu desespero falar mais alto do que sua moral, ele entrega aos criminosos uma menina de 12 anos que certo dia se esconde em seu ônibus. Como a menina é branca e de boa condição financeira, Muralha ganha até mais do que o necessário, mas seu filho morre no momento em que ele tenta levar o trato adiante. É aí que o homem passa a ser assombrado pela figura do filho, exigindo que ele encontre e resgate a menina desaparecida.
Se a sinopse nua e crua parece uma releitura latino-americana da série Busca Implacável, de Liam Neeson, e a forma crua como o filme mostra o sofrimento progressivo de Muralha remete a Bíutiful, de Alejandro Gonzáles Iñárritu, o que torna o filme peculiar é o modo como mescla os códigos do thriller com a cultura boliviana. Atormentado pelo que fez, Muralha passa a ver em toda a parte a figura de um aimará carregando um fardo, representação assombrada de sua própria culpa. A criminalidade, o sincretismo religioso, a solidariedade, todos elementos inescapáveis da cultura sul-americana também fazem aparições simbólicas, embora o tom geral seja sempre seco e desesperançado.
A violência no filme não é o espetáculo dos policiais americanos, mas um elemento naturalizado em uma realidade por si só violenta. É um mérito a maturidade com que o arco de redenção buscado por Muralha se resolve, sem ceder aos moldes maniqueístas de Hollywood. Ao mesmo tempo, é isso o que impede o roteiro de fechar um círculo completo que ele havia insinuado desde o início. Destaque no elenco para a participação do astro argentino Pablo Echarri (de Happy Hour: Verdades e Mentiras), em papel pequeno mas vibrante.