Logo depois da exibição do longa cearense Pacarrete na mostra competitiva de longas brasileiros, na terça-feira (20), sabia-se que algo muito especial havia acontecido em Gramado. O público aplaudiu o filme de pé e, numa aclamação poucas vezes vista nos últimos anos, segurou o diretor e o elenco encabeçado por Marcélia Cartaxo por mais meia hora depois de as luzes da projeção terem se apagado. O público presente à sala fazia fila no corredor para abraçar a intérprete (algum fã mais entusiasmado no meio da muvuca a apertou muito forte e provocou uma luxação com a qual a atriz precisou lidar até o fim do festival). A crítica Suzana Uchôa Itiberê declarou ao diretor Allan Deberton que ele talvez não tivesse total consciência do que havia acontecido, que ele havia acabado de vivenciar um momento histórico no festival.
Com tal aclamação, não surpreende que Pacarrete tenha encerrado a noite de entrega dos Kikitos como o grande vencedor deste 47º festival, premiado em oito categorias (incluindo o muito esperado troféu de Melhor Atriz para Marcélia, aplaudida de pé quando seu nome foi anunciado).
A premiação, marcada por um forte tom político e por referências à hostilidade recebida pelos artistas na chegada, também reconheceu, entre os longas estrangeiros, a produção costa-riquenha El Despertar de las Hormigas, dirigida por Antonela Sudassassi, Raia 4, longa de estreia do gaúcho Emiliano Cunha, na mostra de longas gaúchos e a animação Apneia, de Carol Sakura e Walkir Fernandes, como o melhor curta-metragem da noite.
Além de melhor filme e de melhor atriz para Marcélia Cartaxo, Pacarrete também levou como melhor filme na votação do júri popular, bem como nas categorias desenho de som, ator coadjuvante (João MIguel), atriz coadjuvante (Soia Lira, empatada com Carol Castro, de Veneza), roteiro, e direção para Deberton.
— Nós não estamos acreditando. Sabíamos que era um filme forte, mas não que ia atingir deste jeito a plateia de Gramado. Estamos todos muito felizes e queremos fazer outro filme para poder voltar muito em breve — disse o diretor.
Deberton é o produtor da série Transversais, que conta a história de cinco cearenses transgêneros. O projeto concorria à chamada pública RDE/FSA PRODAV — edital com o objetivo de selecionar séries para a programação da TV pública em canais como a TV Brasil, obtendo financiamento por meio do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). No entanto, o edital foi suspenso após críticas do presidente Jair Bolsonaro. Ao receber o Kikito de melhor direção, o diretor contou sua história com Transversais, beijou o Kikito e avisou:
— Bolsonaro, vou fazer (Transversais) mesmo assim.
Marcélia Cartaxo foi a atriz mais celebrada no festival deste ano. Sua atuação em Pacarrete encantou o público do evento.
— Tem sido uma recepção muito linda na rua. As pessoas que encontram que assistiram ao filme me abraçam e me emocionam. Há quem se comparava com Pacarrete, com a resistência do artista — destacou, citando a personagem homônima, uma bailarina sonhadora que planeja fazer uma apresentação especial em sua cidadezinha no Sertão.
Marcélia ainda comentou sobre a relação que Pacarrete tem com a hostilidade que artistas estão recebendo hoje no Brasil, a exemplo do que ocorreu no tapete vermelho.
— Foi uma contradição muito grande. Só queria que as pessoas respeitassem nossa luta porque é muito digna para os artistas e os nossos editais, além de trabalhar para a nova geração. As pessoas ali estavam como muito ódio, não entendem o que está acontecendo no nosso país, com as nossas matas, com a nossa água, o nosso povo. Nós vamos resistir e continuar contando as nossas histórias e seguir tocando os corações das pessoas — disse a atriz.
Coadjuvantes premiadas
O Kikito de melhor atriz coadjuvante foi dividido entre duas atrizes: Soia Lira, de Pacarrete, e Carol Castro, de Veneza, levaram um troféu cada. Soia destacou o contexto em que ela e o filme foram consagrados em Gramado.
— É uma felicidade muito grande, ainda mais no momento que estamos vivendo. Há muita descriminação com o Nordeste. Ter ganho todos esses prêmios aqui no Sul foi um orgulho muito imenso. Que esse governo aí entenda nossa realidade. Que é preciso fazer cinema. É um lugar onde as pessoas se educam — avaliou.
Para Carol, a premiação significava para ela uma realização pessoal:
— Foi o primeiro prêmio da minha vida (risos). Respeito tanto este festival e sempre sonhei estar aqui. Esse prêmio que representa o sol está iluminando minha vida e aquecendo o meu coração.
Carol ainda também comentou como foi trabalhar em Veneza.
— Renasci fazendo este filme. Recém havia me tornado mãe. Levei minha filha junto comigo para as filmagens, foi uma experiência muito intensa. Eu tirava leite entre as cenas. Ficamos um mês no Uruguai. Depois atravessei o oceano com ela para Veneza, afinal, é só um oceano (risos) — relatou.
A atriz também refletiu também sobre a resistência dos artistas:
— Viver de arte neste tempo sombrio é resistência pura. Vamos continuar, sempre.
Miklos EAD
Premiado com o kikito de melhor ator por seu trabalho em O Homem Cordial, Paulo Miklos não pode comparecer à cerimônia. Em áudio reproduzido pelo diretor Iberê Carvalho, o ator e músico protestou contra o governo brasileiro.
– O cinema no Brasil é estratégico para a nossa democracia. Deve ser encarado como política de Estado. Acima dos governos, livre de censura. Só assim serão possíveis filmes como O Homem Cordial.
Latinos
Na mostra de longas latinos, o drama El Despertar de las Hormigas foi consagrado como o melhor filme. Produção da Costa Rica, com Daniella Valenciano no papel principal, o longa enfoca a vida de Isabel, esposa e mãe dedicada de duas filhas que, no entanto, é sutilmente pressionada por seu marido e pela família dele a ter uma terceira criança, que talvez seja o tão desejado filho homem, algo contra que a personagem vai acabar se rebelando.
— Esta premiação representa principalmente a necessidade de falarmos de temas como esses, de ver histórias distintas no cinema, de diferentes pontos de vista, neste caso o meu, como mulher, como centro-americana, como costa-riquenha. Penso que a pluralidade de vozes é importante e o fato de que fomos reconhecidos aqui com esse trabalho é um indício de que realmente fazem falta filmes de muitas outras pessoas, de outros lugares. Estou muito feliz e agradecida — disse a diretora Antonela Sudassassi.
A mostra dos latinos também consagrou na votação a produção chilena Perro Bomba, sobre a árida rotina dos imigrantes haitianos no país, trabalhando em subempregos e lidando com o preconceito de uma sociedade refratária a aceitá-los.
— É bastante interessante este momento, e para nós parece paradoxal. Realizamos este filme nas ruas, em colaboração, sem recursos de ninguém a não ser os nossos, que não eram econômicos, e sim amizade, amor e coragem, e a urgência de falar de algo tão importante. E chegar a um festival de cinema e e ter de competir com filmes que também foram feitos de maneira muito sacrificada é estranho. Apesar disso, estamos muito felizes, porque isso pode nos ajudar a fazer outro filme — disse Juan Cáceres, que recebeu o Kikito de melhor direção.
Exibido na segunda noite do festival, o longa gaúcho Raia 4, estreia em longa-metragem de Emiliano Cunha competia em duas mostras diferentes do festival, a de longas gaúchos e brasileiros. Foi premiado nas duas. Recebeu o prêmio da crítica e de fotografia nos longas brasileiros e foi reconhecido como o melhor filme na competição dedicada aos longas gaúchos.
— Meu primeiro longa, é o resultado de um trabalho planejado há bastante tempo, com uma equipe maravilhosa, e acho que representa acima de tudo acreditar nas nossas apostas, no cinema que a gente faz, no cinema que a gente quer construir independentemente do que vá acontecer, um cinema que precisa ser reconhecido como uma força criativa e geradora de emprego — disse Emiliano ao fim da premiação.
Novos curadores
Durante o evento, os novos curadores do festival foram anunciados. O jornalista e apresentador Pedro Bial e a atriz e cantora argentina Soledad Villamil se juntam a Marcos Santuário na curadoria da edição de 2020, que ocorrerá entre os dias 14 e 22 de agosto.
Vencedores do 47º Festival de Cinema de Gramado
Longas Brasileiros
Melhor Filme: “Pacarrete”, de Allan Deberton
Melhor Direção: Allan Deberton, “Pacarrete”
Melhor Ator: Paulo Miklos, em “O Homem Cordial”
Melhor Atriz: Marcélia Cartaxo, em “Pacarrete”
Melhor Roteiro: Allan Deberton, André Araújo, Natália Maia e Samuel Brasileiro, por “Pacarrete”
Melhor Fotografia: Edu Rabin, por “Raia 4”
Melhor Montagem: Joana Collier e Fernanda Krumel, por “Hebe”
Melhor Trilha Musical: Sascha Kratzer, por “O Homem Cordial”
Melhor Direção de Arte: Tulé Peake, por “Veneza”
Melhor Atriz Coadjuvante: Carol Castro, em “Veneza” e Soia Lira, em “Pacarrete”
Melhor Ator Coadjuvante: João Miguel, em “Pacarrete”
Melhor Desenho de Som: Rodrigo Ferrante e Cauê Custódio, por “Pacarrete”
Prêmio especial do Júri: “30 Anos Blues”
Júri da Crítica: “Raia 4”, de Emiliano Cunha
Melhor filme do Júri Popular: “Pacarrete”, de Allan Deberton
Longas estrangeiros
Melhor Filme: “El Despertar de Las Hormigas”, de Antonella Sudasassi Furnis
Melhor Direção: Juan Cáceres, por “Perro Bomba”
Melhor Ator: Fernando Arze, em “Muralla”
Melhor Atriz: Julieta Díaz, “La forma de las horas”
Melhor Roteiro: Bernardo e Rafael Antonaccio, por “En el Pozo”
Melhor Fotografia: Rafael Antonaccio, por “En el Pozo”
Prêmio especial do júri: para as meninas Isabella Moscoso e Avril Alpizar do filme “El despertar de las hormigas’, por suas excelentes atuações.
Menção Honrosa: para a direção de arte de “Dos Fridas”
Júri da Crítica: “El Despertar de Las Hormigas”, de Antonella Sudasassi Furnis
Melhor filme Júri Popular: “Perro Bomba”, de Juan Cáceres
Longas Gaúchos
Melhor filme: Raia 4, de Emiliano Cunha
Curtas Brasileiros
Melhor Filme: “Apneia”, de Carol Sakura e Walkir Fernandes
Melhor Direção: Diogo Leite, por “O Menino Pássaro”
Melhor Ator: Rômulo Braga, em “Marie”
Melhor Atriz: Cassia Damasceno, em “Mulher que Sou”
Melhor Roteiro: Renata Diniz, por “O Véu de Armani”
Melhor Fotografia: Sebastian Cantillo, por “A Ética das Hienas”
Melhor Montagem: Daniel Sena e Thiago Foresti, por “Invasão Espacial"
Melhor Trilha Musical: Carlos Gomes, em “Teoria Sobre Um Planeta Estranho”
Melhor Direção de Arte: Gutor BR, por “Sangro”
Melhor Desenho de Som: Gustavo Soesi, “Um Tempo Só”
Prêmio especial do júri: para as atrizes Divina Valéria e Wallie Ruy, em “Marie”, por nos permitirem vivenciar deslocamentos corporais inesperados e por imaginarem um futuro travesti num país que mais mata trans no mundo.
Júri da Crítica: “Marie”, de Leo Tabosa
Melhor Filme Júri Popular: “Teoria Sobre Um Planeta Estranho”, de Marco Antônio Pereira
Menção Honrosa: a Ester Amanda Schafe, de “A Pedra”, pela vigorosa interpretação e pelo talento promissor que revela.
Prêmio Aquisição Canal Brasil: “Marie”, de Leo Tabosa