Ao som do hit oitentista Total Eclipse of The Heart, de Bonnie Tyler, um ônibus preto de dois andares parte da Praça Silveira Martins, no centro de Bagé. O destino, a 13 quilômetros da região central da cidade, é a pousada Chácara das Roseiras. Esse trajeto se repetiu dos dias 6 a 12 de abril. Agora, o ônibus se encontra na região metropolitana de Porto Alegre. Depois, cruzará sete Estados até meados de maio, chegando à Bahia. Trata-se do veículo que leva a equipe de Além de Nós, um filme feito na estrada.
Produzida pela Atama Filmes e com direção de Rogério Rodrigues (Kalanga – Cidade das Bicicletas), a longa viagem a ser mostrada em Além de Nós começa por Bagé. Estrelado por Thiago Lacerda e Miguel Coelho, o longa começa sua história após Leo, personagem de Miguel, perder o emprego e presenciar a morte de seu pai, Leopoldino (Clemente Viscaíno). Ele vive na remoto e pampiano Dos Passos, lugarejo do qual nunca saiu. Após ler uma carta, decide levar uma foto de seu pai ao lado de seu avô e do ex-presidente Getúlio Vargas ao Palácio do Catete, no Rio, cumprindo um sonho de Leopoldino. Para a empreitada, ganha a companhia de seu tio Artur (Thiago Lacerda), de quem sempre foi distante. Nessa jornada, Leo percorre um universo contemporâneo e globalizado.
– É um filme sobre transformação e desenraizamento. A morte do pai leva o garoto a uma jornada de autoconhecimento, que também é um retrato sociológico dessa gente do Pampa, que vai perdendo espaço para o eucalipto e a soja e migrando para a cidade. E que gaúcho é esse que chega à cidade grande – define Lacerda.
O diretor Rogério Rodrigues corrobora:
– Leo é levado a essa jornada pela força da globalização. E, consequentemente, busca uma identidade. Não lembro de outro filme que tenha a figura do gaúcho fora de seu ambiente geográfico. Quem é o gaúcho hoje fora do Rio Grande?
Rogério conta que buscou retratar um gaúcho menos caricato e mais universal em Além de Nós.
– O trabalho que o Rogério faz não é mostrar aquele gaúcho clássico, estereotipado, que toma mate. Sem trazer aquela coisa forçada, muito literal, que, às vezes costuma ser vista na cinematografia – destaca Ane Siderman, produtora executiva do filme.
Cenário pampiano reflete isolamento
A reportagem de GaúchaZH embarcou no ônibus da produção na terça-feira passada e acompanhou as filmagens na pousada Chácara das Roseiras. No trajeto, a trilha sonora projetada nas caixas de som do veículo ia da MPB de Clara Nunes a farofas pop como a já citada Bonnie Tyler e Seal (Kiss From a Rose) – cortesia do caracterizador Johnny Left. Após 20 minutos, a equipe chegou à locação.
Composta essencialmente por três casas amarelas com janelas verdes, a pousada é cercada pela bonita paisagem verde dos campos. Pelo pasto, cordeiros circulam livremente. O local e seus arredores integram a fictícia Dos Passos.
– É um povoado pequenininho, na fronteira do Brasil com o Uruguai. Um lugarejo onde a globalização não chegou. No começo do filme, não se sabe em que tempo nós estamos. Poderia dizer que é anos 1950, 60, 70 ou 90. Você só vai perceber que estamos nos dias atuais quando a história sai dali. Antes disso, não há celular ou tecnologia – explica Rogério.
Entre uma cena e outra, porém, a tecnologia vem à tona. Em meio ao clima tranquilo do set, Miguel Coelho saca o smartphone para mostrar o áudio de um fluminense indignado com seu chefe por ter que trabalhar em um dia de chuva (viral que, depois, soube-se ser uma brincadeira de youtubers). Thiago Lacerda exibe ao ator Néstor Monasterio um vídeo de Programa do Mal, esquete do antigo humorístico Hermes e Renato.
Quando uma cena é rodada, o silêncio sepulcral prevalece na pousada, escutando-se apenas os quero-queros durante o dia, e, à noite, o coaxar dos sapos e o canto dos grilos. Porém, em uma filmagem noturna, um diálogo entre Ida Celina e Thiago Lacerda sofre a interferência de uma moto barulhenta na estrada a um quilômetro dali. Tudo de novo.
– O destino tem controlado esse filme – reflete Miguel Coelho.
Além de Nós tem estreia em festivais prevista para 2020.