Por Leonardo Bomfim
Crítico de cinema, programador da Cinemateca Capitólio Petrobras
Em cartaz na mostra de cinema latino-americano que ocupa a Cinemateca Capitólio Petrobras, o filme argentino La Flor é um acontecimento já na sinopse. São 868 minutos de duração, 10 anos de filmagem e quatro atrizes – Pilar Gamboa, Laura Paredes, Elisa Carricajo e Valeria Correa (do grupo teatral portenho Piel de Lava) – interpretando as mais diversas personagens em várias tramas apresentadas em uma obra dividida em seis histórias que se multiplicam em um infinito de possibilidades narrativas. O monumento de Mariano Llinás, como bem definiu o diretor conterrâneo Matías Piñeiro, na revista Film Comment em janeiro, período em que o filme ganhou suas primeiras e badaladas exibições nos EUA, é de fato “uma grande casa de ficções”.
No prólogo, Llinás aparece em cena e desenha uma espécie de mapa para a aventura. Introduz as histórias com um humor perspicaz (“O primeiro episódio pode ser considerado um filme B, do tipo que os americanos costumavam fazer de olhos fechados, mas que agora eles esqueceram como fazer”) e indica um grande passeio por alguns dos gêneros mais atraentes da era de ouro do cinema: o terror B, o filme de espionagem, o musical.
Não tão conhecido no Brasil, apesar da nossa vigilância obsessiva e muitas vezes invejosa (pelos motivos errados!) da cinematografia argentina, o diretor de La Flor tomou protagonismo no cinema do novo século. Vivemos um momento delicioso da arte dos filmes. A ficção voltou a desconcertar e seduzir. Em tantas filmografias que atravessam territórios, encontramos novamente os vestígios desvairados de obras-primas criadas sob o signo das dobras narrativas: As Mil e uma Noites, Dom Quixote, os contos de mergulhos-no-abismo de Edgar Allan Poe, Jorge Luis Borges. Consequentemente, as referências mais fabulares daqueles que jogaram com a trama e o drama na história do cinema retornam: Hitchcock, Orson Welles, Resnais, Rivette, Raúl Ruiz, Kiarostami, Lynch.
No início do século, quando as festas das ficções ainda pareciam subterrâneas e as heranças teatrais e literárias pareciam um mal a ser extirpado em um circuito de festivais dedicado a uma vertente excêntrica do minimalismo cinematográfico, Llinás já pavimentava a possibilidade das veredas se bifurcarem novamente. Exibidos em Porto Alegre (na Sala Redenção e na P. F. Gastal), seus dois longas anteriores preparam o terreno para a radicalização de La Flor.
Em Balneários (2002), há uma coleção de histórias singulares sobre o tema que dá título à obra – cada capítulo, celebrando a exceção na regra das tradições litorâneas, traz uma aventura heterogênea em termos de imagens (muitas matérias-primas: fotos, trechos de filmes antigos, cenas captadas com câmeras digitais de resolução baixa), e nas especificidades dos relatos (das inspirações do cinema noir ao elogio do falso na melhor tradição wellesiana).
O longa seguinte, Histórias Extraordinárias (2008), causou espanto em suas quatro horas de conspirações hitchcockianas – pelo entendimento de que a ficção pode constituir o mundo e pela presença de motivos clássicos do cineasta inglês: o homem errado, o homem que sabia demais, a janela indiscreta – inacreditavelmente construídas apenas com uma narração em off. Era flagrante o domínio assustador de Llinás na arte de contar histórias e o desejo de recolocar a palavra, dialogando com o melhor da tradição portuguesa (em outros períodos, Manoel de Oliveira, João Cesar Monteiro; no contemporâneo, Miguel Gomes, Rita Azevedo Gomes).
Pode-se imaginar que tudo isso está em La Flor, e de fato estamos diante de uma revolução no tão famigerado “storytelling” dos manuais de roteiro. Mas, com o passar da trama, surge o trabalho de encenação. É o grande passo além das obras anteriores, quando o jogo de encenar torna-se tão importante quanto o ato de narrar. E, com tantas personagens construídas pelas quatro atrizes, encontramos, talvez disfarçado dentro desse universo fabular quase infantil, um questionamento central na contemporaneidade. Como ser – simultaneamente – o mesmo e outro? A sugestão de Llinás segue a cartilha de Xerazade: a resposta não está só em um sonho, mas em muitos.
As sessões
A exibição de La Flor integra a mostra Cinema da América Latina, que é composta de 14 longas-metragens recentes e está em cartaz na sala do centro de Porto Alegre (veja a programação em capitolio.org.br). Os 868 minutos do filme, que narra seis histórias com personagens vividas pelas mesmas quatro atrizes, foram divididos em três partes. As duas primeiras serão apresentadas no sábado, dia 23, às 14h e às 19h. A teceira ficou para domingo, 24, às 16h.