Relevante em razão do tema que aborda e insosso como obra cinematográfica, Green Book – O Guia, dirigido por Peter Farrelly, é daqueles ganhadores do Oscar de melhor filme que, além do anticlímax que provoca ao ser anunciado, tende a cair no esquecimento, tal qual foram em tempos recentes títulos como Crash – No Limite, O Discurso do Rei, O Artista e Argo.
Inspirado numa história real e erguido sobre um esquematismo narrativo primário, Green Book volta ao segregado EUA dos anos 1960 para acompanhar a jornada de Dr. Don Shirley (Mahershala Ali), um pianista negro e gay, pelos rincões sulistas onde tipos como ele costumavam ser linchados sumariamente pela mais banal das motivações. Para seu motorista, contrata um ítalo-americano bronco, Tony "Lip" Vallelonga (Viggo Mortensen), com quem vive uma relação de conflito e estranhamento que deságua no afeto e na amizade.
O filme de Peter Farrelly venceu mesmo envolto em polêmicas. A começar pelas que o elenco e a produção se envolveram: um tweet de Nick Vallelonga, roteirista do filme, em que criticava muçulmanos foi trazido à tona; jornais publicaram que o diretor Peter Farrelly tinha o hábito de mostrar o pênis de brincadeira em 1998, no set de Quem Vai Ficar com Mary?, inclusive para a atriz Cameron Diaz; já o protagonista Viggo Mortensen foi acusado de racismo por usar um termo ofensivo para se referir a um negro.
Para além disso, o longa provocou controvérsias pois familiares de Dr. Shirley ficaram decepcionados com partes do roteiro. Uma sobrinha-irmã de Shirley chegou a dizer que a abordagem estava equivocada. Lembrando que o roteiro de Green Book é de Nick Vallelonga, filho de Tony, o motorista de Shirley.
Com o recorde de mulheres (15) e profissionais negros (sete) premiados em diferentes categorias e o triunfo do México que Donald Trump quer isolar com um muro (menos pelo seu primeiro Oscar de filme estrangeiro e mais pelo impressionante fato de o país emplacar a quinta estatueta de melhor direção em seis anos consecutivos, com a segunda para Alfonso Cuáron, de Roma), a cerimônia de domingo, marcada pela exaltação e reconhecimento da diversidade, poderia ter melhor desfecho.
Havia entre os oito concorrentes um filme bem melhor sobre racismo, Infiltrado na Klan, de Spike Lee, ganhador de um consolador troféu de roteiro adaptado, distinção repartida com seus três parceiros de escrita. O fanfarrão Lee, aliás, mostrou-se indignado com a vitória de Green Book. Foi visto caminhado para o fundo do Teatro Dolby enquanto a equipe vencedora subia ao palco. O diretor já havia lembrado em entrevistas que seu referencial Faça a Coisa Certa não foi indicado a melhor filme na cerimônia de 1990, na qual Conduzindo Miss Daisy triunfou com uma história edulcorada em torno do racismo, também sustentada na tensão dramatúrgica entre passageiro motorista - no caso, a rica senhora branca e seu chofer negro. Ao fim da cerimônia, Lee ainda fez um comentário sarcástico, segundo o site Deadline:
— Toda vez que tem alguém dirigindo para alguém em perco.
Embora alinhados como o prêmio do Sindicato dos Produtores, confiável termômetro para medir a temperatura do Oscar, que também elegeu Green Book, os cerca de seis mil votantes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas poderiam ter sido mais ousados na eleição do melhor filme. Até para ressaltar o impacto das mudanças que a Academia tem apresentado nos últimos anos, renovando seus quadros para ampliar a representatividade sexual, racial e geográfica da entidade.
Chancelar a consagração de Roma (que das 10 indicações já havia levado as estatuetas de fotografia, filme estrangeiro direção), podem ter pensado os votantes, seria abrir demais a fresta para a Netflix e outras plataformas de streaming que ignoram o circuito convencional das salas de cinema e o desempenho de bilheteria, peças que ainda fazem bater o coração da indústria.
Poderiam reconhecer a bem-humorada contundência de Infiltrado na Klan, com seu painel sobre a tensão racial nos EUA de ontem e de hoje, ou abordagem acidamente criativa que o diretor grego Yorgos Lanthimos fez de um drama de época nos bastidores da monarquia britânica, modelo tão apreciado no Oscar, em A Favorita. Pode-se especular ainda, na complexidade do processo de votação, que estes, sobretudo A Favorita, tenha brigado voto a voto com Roma, abrindo espaço na corrida para um azarão
A opção por Green Book indica que a bola de segurança ainda é um elemento fundamental do jogo em Hollywood, onde, como diz o falido nobre de Lampedusa que não perde a pose, tudo deve mudar para que se continue como está.
Curiosamente, como o filme mais premiado da noite, Bohemian Rhapsody, com quatro estatuetas, inclusive a de melhor ator para Rami Malek, parece ter se materializado no éter. Seu diretor, Bryan Singer, foi expulso do set na final da produção, em razão de atrasos, ausências e diferenças criativas e ainda está às voltas com denúncias de abuso sexual de menores de idade. Defenestrado e agora visto como párias por seu pares, mas com seu nome impresso nos créditos de um dos sucessos da temporada, Singer foi completamente ignorado nos discursos de agradecimento.