Quase nada do que fez Christa Päffgen tornar-se uma figura pública no final dos anos 1960 como musa do mestre da pop art Andy Warhol e integrante fugaz do grupo Velvet Underground está presente na sua cinebiografia, Nico, 1988. E é justamente isso que torna interessante o filme da diretora Susanna Nicchiarelli com sessões em Porto Alegre nesta quarta (8), às 21h, e na quinta (9), às 18h40min, no Espaço Itaú (Av. Túlio de Rose, 80, no Bourbon Country Shopping). O longa integra a programação da 8 1/2 Festa do Cinema Italiano, mostra que traz ao Brasil longas-metragens inéditos.
Produção ganhadora da mostra Orizzonti do Festival de Veneza 2017, Nico, 1988 faz um recorte sobre os dois últimos anos de vida de Christa, conhecida como Nico, apelido que consagrou sua conturbada trajetória como modelo, atriz e cantora. Nascida em 1938 em Colônia, na Alemanha, Nico despontou nas passarelas e capas de revistas no começo dos anos 1950 e tornou-se habituée do circuito Berlim-Paris-Londres-Nova York. Entrou no cinema fazendo figuração (como em A Doce Vida, de Fellini) e na década seguinte imergiu na efervescência musical que revolucionaria a cultura pop – circulou com, entre outros, Brian Jones, guitarrista dos Rolling Stones e Bob Dylan. E assim conheceu Warhol, que fez dela estrela de seus filmes experimentais e a colocou em evidência no grupo de vanguarda sonora que formou e que gravou, em 1967, o antológico disco The Velvet Underground and Nico, ao lado de Lou Reed, John Cale, Sterling Morrison e Maureen Tucker — Cale seguiu como seu parceiro musical. Nesse mesmo ano, Nico lançou seu aclamado disco solo Chelsea Girl.
São informações prévias que ajudam o espectador e embarcar no recorte cronológico proposto pela diretora, e que serão pinceladas ao longo da narrativa por meio de imagens de arquivo, de fontes como os documentários Walden (1969) e Scenes From the Life of Andy Warhol (1982), ambos de Jonas Mekas, de lembranças de interlocutores e de entrevistas amargas que Nico concede em meio a uma acidentada turnê pela Europa em 1986.
Viajando de carro com sua banda e seu empresário, Nico, em permanente torpor em razão do vício em heroína, apresenta-se em pequenos clubes para uns gatos pingados que a cultuam. O passado é um peso que arrasta, embaralhado entre memórias dos bombardeios sobre a Alemanha na II Guerra e o desejo de se reaproximar de Christian, filho que teve com o galã francês Alain Delon – nunca reconhecido pelo ator. O rapaz com tendências suicidas encontra-se internado em uma clínica de reabilitação.
Nico promovia à época o álbum Camera Obscura (1985), com o qual reforçava a sonoridade experimental, gótica e multicultural que consagrou com a voz grave que o tempo e os excessos tornaram ainda mais sombria e melancólica. Imprensa e público, porém, permanecem fascinados por seus dias com o Velvet Underground. Ela repete nas entrevistas frases como: “Não quero falar sobre isso, minha carreira musical começou após o Velvet Underground”; “Só fiz três músicas com eles, passei a maior parte do tempo no canto do palco tocando pandeiro”. Sobre seu estado debilitado, garante: “Eu não era feliz quando era bonita”.
Em sua reta final, Nico reencarna de forma impressionante na atriz dinamarquesa Trine Dyrholm. É Trine quem canta faixas emblemáticas que Nico preservava no repertório, como All Tomorrow’s Parties, do Velvet, e These Days, canção de Jackson Browne que gravou em Chelsea Girl — ambas responsáveis por momentos vibrantes na trama.
No seu caminho conscientemente autodestrutivo, Nico foi encontrar a morte de maneira estúpida– não mencionada no filme. Passava uma temporada com Christian em Ibiza, na Espanha, quando, em 17 de julho de 1988, saiu de bicicleta e caiu numa estrada. Um taxista a encontrou desacordada e percorreu alguns hospitais até que ela pudesse ser atendida. Foi medicada sob suspeita de insolação, em razão das roupas pesadas que usava no forte calor, mas morreu um dia depois em decorrência de hemorragia cerebral.
No tributo a que se propõe, Nico, 1988 é bem-sucedido ao centrar foco no, digamos, pacto que a artista fez com seus traumas e fantasmas para torná-los parceiros de inspiração e seguir adiante em sua errática jornada. Mas Nico acabou traída pelo destino justamente no momento que parecia o mais solar que vivia em décadas.