
A ventura romântica juvenil em tom de fábula que transcorre entrelaçada à violenta rivalidade entre duas gangues de motoqueiros em uma cidadezinha do Mato Grosso do Sul na fronteira com o Paraguai. Esses dois registros são costurados pelo diretor carioca Felipe Bragança com episódios históricos e lendas ancestrais que expõem feridas sociais abertas por desigualdade, injustiça e preconceito.
Em cartaz a partir de hoje nos cinemas, Não Devore Meu Coração é o primeiro longa-metragem que Bragança assina sozinho, após se destacar em trabalhos inventivamente autorais como A Fuga da Mulher Gorila (2009), A Alegria (2010), ambos em parceria com Marina Meliande, e Desassossego – Filme das Maravilhas (2011), projeto de realização coletiva.
Não Devore Meu Coração tem origem em dois contos do escritor mato-grossense Joca Reiners Terron publicados na coletânea Curva de Rio Sujo (2003): em um, o menino branco Joca (Eduardo Macedo) alimenta a paixão por uma jovem índia guarani (Adeli Gonzales); em outro, o jovem adulto Fernando (Cauã Reymond), agroboy filho de fazendeiro, destaca-se em uma turma de motoqueiros liderada por um tipo místico.
Em seu roteiro, Bragança tornou irmãos os dois protagonistas das histórias. Eles vivem com a mãe na cidade de Bela Vista, cortada pelo rio Apa, cenário de sangrentos confrontos na Guerra do Paraguai (1864 –1870). Massacres de paraguaios, sobretudo indígenas, e de brasileiros deram origem a um ciclo de animosidades, vinganças e disputas territoriais que ainda hoje marcam a região com violência e profunda desigualdade. Um universo de faroeste ilustrado pelos motoqueiros de ambos os lados da fronteira que disputam rachas e provocam-se nos inferninhos de beira de estrada.
– Joca representa uma tentativa inocente de resolver, com o amor e a fantasia, problemas do passado, enquanto Fernando, na sua vida de motores e velocidade, não busca essa conciliação – diz Bragança. – A mistura de história e mitologia desse lugar permitiu a construção do universo fantástico que me interessa como realizador. Visitei a região ao longo de cinco anos e vi que, entre os jovens como Joca, misturam-se no imaginário referências históricas e elementos da cultura pop como games, filmes e quadrinhos.
Com exceção de Cauã e de Claudia Assunção, que vive Joana, a mãe dos rapazes, todo o elenco, que conta com uma breve participação de Ney Matogrosso, é formado por atores amadores que foram preparados por Bragança ao longo de quatro meses.
Entrevista com Cauã Reymond
Você trabalhou com nomes de destaque no cinema autoral brasileiro, como Carlão Reichenbach, José Eduardo Belmonte, agora com o Felipe Bragança e tem a caminho o novo filme do Cláudio Assis, Piedade. O que lhe move na escolha dos filme que faz?
Acabo inclinado para o cinema de arte. Sempre entendi a matemática da televisão para me comunicar com o grande público e gosto das novelas e séries que faço. Mas esse cinema mais de nicho me leva para o caminho da experimentação. No começo da minha carreira, o que me levava a um projeto eram as pessoas com quem iria trabalhar, o que eu poderia aprender com elas, independentemente do personagem que faria. Hoje, presto atenção em tudo isso, pois é um processo de amadurecimento constante, mas sigo o personagem, para ver se ele me não leva a um lugar por onde já circulei.
Como se deu sua entrada em Não Devore Meu Coração, do qual você participa também como coprodutor?
A visão do Felipe Bragança sobre esse projeto foi muito convidativa. Primeiro, ele me chamou como ator, por volta de 2008, 2009. E adorei o personagem, muito diferente das coisas que vinha fazendo na época. Mas o dinheiro demorou a sair. Quando saiu, eu tinha acabado de fazer (a minissérie da Globo exibida em janeiro) Dois Irmãos e estava supercansado. E mesmo assim ele conseguiu me convencer a ir pro Mato Grosso do Sul e “emburacar” no filme. Foi um processo de muito amadurecimento porque trabalhei com não atores, entrei em contato com uma cultura da qual não tinha conhecimento. Foi muito enriquecedor. E o filme retrata de um jeito até suave a realidade impactante daquela região.
São perceptíveis referências à aventura juvenil Conta Comigo (1986), de Rob Reiner, e a O Selvagem da Motocicleta (1983), o Rumble Fish do Coppola. Você concorda?
Sim. Conta Comigo, com o River Phoenix, é um filme muito forte. O Rumble Fish, com Mickey Rouke e o Matt Dillon bem novinhos, também. E tem ainda um pouco do The Wild One (O Selvagem), com o Marlon Brando. São filmes que me ajudaram a ver por onde o personagem iria caminhar na visão do Felipe.
E como foi trabalhar com atores amadores?
Isso te dá uma responsabilidade maior para construir o jogo de dramaturgia e imaginação que convida o ator inexperiente a entrar nesse universo. É um espaço de maior concentração, sem muita conversa, porque é a primeira vez deles. Eu ficava com eles apenas na hora de filmar a cena.
Você tem acompanho a circulação do filme pelos festivais e sessões de lançamento?
Sempre que posso. Estive no lançamento no Festival de Sundance, mas não pude ir ao Festival de Berlim. Participei do Festival de Brasília e da Mostra de São Paulo. Faz parte da minha função como produtor também ajudar o filme a ganhar espaço em lugares onde o cinema de arte geralmente não entra.
Qual é seu próximo filme?
Uma Dupla Quase Perfeita, com a Tatá Wernek. Eu não fazia uma comédia, um filme mais comercial, desde Divã (2009). Eu curti. A direção é do Marcos Baldini, de Bruna Surfistinha (2011).