Projeto idealizado pelo cineasta e artista visual alemão Julian Rosefeldt, em parceria com a atriz australiana Cate Blanchett, a videoinstalação Manifesto foi apresentada em um museu de Melbourne, na Austrália, em dezembro de 2015. Passou em seguida a circular pelo mundo, em galerias de arte de cidades como Nova York e Munique, ao mesmo tempo em que Rosefeldt a adaptava para passar nos cinemas. Essa versão estreia nesta quinta-feira (25) em Porto Alegre e é exemplo do conceito do cinema expandido, o trânsito interplataformas de exibição cada vez mais difundido no campo audiovisual.
Na instalação, 13 curtas-metragens — um prólogo e 12 protagonizados por Cate — exibidos simultaneamente em 13 telões lançavam a inventiva proposta: iluminar de forma ao mesmo tempo didática e provocadora densas questões que permeiam a produção e o consumo da arte em diferentes frentes, da pintura à arquitetura passando pelo cinema. E também destrinchar o impacto/diálogo provocado por uma obra de arte em um espectador/receptor equipado com distintas sensibilidades e modulações de absorção e compreensão.
Rosenfeldt compilou nesses curtas postulados de pensadores e realizadores que balizaram os principais movimentos artísticos do século 20, como, entre outros, futurismo, dadaísmo, surrealismo, Grupo Fluxus, pop art, construtivismo, minimalismo e arte conceitual. Para o filme com 95 minutos de duração, os curtas foram intercalados de forma a estabelecer uma unidade narrativa que, em síntese, questiona o papel do artista na sociedade, em especial nas suas movimentações de vanguarda e ruptura de paradigmas.
Vale destacar que Manifesto chega ao Brasil em momento bastante oportuno, quando aqui ganham corpo polêmicas alimentadas pelo embate entre liberdade de expressão e censura. E nesse espelhamento com a realidade local, ganha um contorno irônico o segmento em que Cate, na impressionante tour de force com que interpreta 13 diferentes personagens (faz duas em um dos curtas) encarna uma dona de casa carola que senta com marido e filhos à mesa e começa assim sua oração de graças: “Sou a favor de uma arte que é política, erótica e mística”, citando o escultor sueco radicado nos EUA Claes Oldenburg, nome de frente de pop art ao lado de Andy Warhol e Roy Lichtenstein.
Dona de dois Oscar em seis indicações, a versátil Cate dá o tradicional show de atuação aparecendo, entre suas caracterizações, como morador de rua, operária de um lixão, executiva, cientista, coreógrafa, apresentadora de TV e professora de colégio. Fez tudo isso em apenas 11 dos 12 dias de filmagens de Manifesto em Berlim.
Emergem a todo instante palavras de ordem: “Toda a arte atual é falsa, não porque é cópia, apropriação, simulacro ou imitação, mas porque lhe falta o impulso crucial do poder, coragem e paixão”, segundo a artista americana Elaine Sturtevant. Rosefeldt parte da provocação política e estética, embaralhando o Manifesto Comunista de Marx e Engels e o Manifesto Dada de Tristan Tzara, para falar de artistas, cineastas e pensadores diante da crise no capitalismo e seu reflexo na cultura. Destaca o papel revolucionário da arte diante de um quadro geral (aqui também em sintonia com o Brasil de hoje) de negação da cultura.
No prólogo de Manifesto, a voz de Cate destaca a necessidade da contradição contínua na busca pela afirmação e da rejeição ao senso comum. Assim, espectador terá pela frente um instigante exercício em que um postulado “definitivo” pode ser contradito pela abordagem seguinte. São esses choques que moldam o efervescente barro da criação, pode-se interpretar. É lembrado ainda o presunçoso manifesto Dogma 95, lançado em 1995 por cineastas dinamarqueses (Lars Von Trier e Tomas Vinterberg entre eles), que enquadrou a realização de um filme em 10 mandamentos pétreos — que eles próprios logo profanariam. Na linha do “nada se cria, tudo se copia”, surge uma citação de Jean-Luc Godard: “Não importa de onde você tira as coisas, mas sim para onde as leva”.
Se, em alguns momentos, a verborragia erudita pode se mostrar espinhosa aos menos íntimos do academicismo inerente ao tema, Manifesto mostra-se bastante acessível em seu conjunto ao trazer à tona conceitos em sintonia com os tempos em que vivemos: “A rapidez gera desconfiança, o discurso vira opinião, quando não se precisa saber nada para pensar saber tudo, quando refletir é olhar para o espelho e contemplar é pensar sobre si mesmo”.
MANIFESTO
De Julian Rosefeldt
Drama/ensaio, Alemanha/Austrália (2015/2017), 95min.
Cotação: muito bom