Por que amamos o cinema? A pergunta não tem validade apenas para profissionais da área e cinéfilos inveterados – a sedução dos grandes filmes é absolutamente irrestrita. Ao longo das décadas, diversos teóricos se debruçaram sobre essa questão, encontrando respostas bastante conclusivas, que invariavelmente incluem a capacidade de subjetivação das imagens em movimento, as relações de tempo e espaço que elas estabelecem e, consequência disso, a maneira como mimetizam o real.
O principal mérito de Um Filme de Cinema, documentário de Walter Carvalho que estreou na semana passada em Porto Alegre, no Espaço Itaú, e entra em cartaz nesta quinta-feira (31) no CineBancários, é amplificar essa discussão, que é essencialmente acadêmica.
Decano da direção de fotografia no cinema nacional, Carvalho entrevistou alguns dos melhores cineastas em atividade desde o início da década passada – as primeiras conversas, conforme o letreiro ao fim da projeção, datam de 2002. Em meio a esses depoimentos, incluiu trechos de filmes, quase sempre para ilustrar o que está sendo dito. E, brincadeira metalinguística das mais interessantes, registrou cada entrevista emulando o visual dos longas dos respectivos entrevistados, de modo que Béla Tarr aparece falando em um preto e branco dramático, Júlio Bressane, em imagens granuladas e Gus Van Sant, em planos marcados pela saturação das cores primárias.
Esse mosaico de texturas dá um recado fundamental de Um Filme de Cinema: trata-se de uma arte que admite dispositivos muito diferentes entre si, ao contrário do que sugere a padronização da indústria (tanto a de Hollywood quanto a da televisão). O universo de possibilidades da linguagem é a própria pauta, por exemplo, da conversa com Karim Aïnouz, que se dá nos bastidores das filmagens de O Céu de Suely (2006), longa fotografado por Carvalho que se tornou referência do chamado cinema de fluxo – que tanto influenciou a novíssima geração da produção nacional.
É com Aïnouz e também com Tarr que Carvalho se solta um pouco mais, permitindo-se ir além dos papos em si e incluindo, na narrativa, trechos nos quais a câmera testemunha o afeto entre entrevistador e entrevistado (caso de Aïnouz) ou simplesmente persegue o entrevistado quando este está indo embora (caso de Tarr). É uma forma de abordar o fetiche do autor, elemento que está no cerne do projeto (só foram escolhidos cineastas importantes) mas que não pautou as conversas propriamente ditas, com exceção do finzinho do diálogo com o realizador húngaro, quando este justifica por que chegou a hora de parar de filmar: o diretor não pode ser maior do que os seus filmes.
É um privilégio ouvir a lucidez de Tarr – a dele e a de Jia Zhang-ke, que infelizmente, no entanto, aparece pouco em Um Filme de Cinema. Asghar Farhadi, Ken Loach e Andrzej Wajda (morto em 2016) também estão entre os entrevistados, mas merecem mais destaque as pertinentes reflexões propostas por Bressane, Lucrécia Martel e Ruy Guerra, verdadeiras pontes entre o pensamento de teóricos como Gilles Deleuze (citado pelo primeiro) e a prática cinematográfica – pontes estas em alguns momentos construídas com humor (sobretudo nos comentários de Lucrécia). Interessante observar: o circuito transformado em latifúndio da indústria com frequência nos priva de assistir aos longas desse trio, o que, vendo-os falar, torna-se algo ainda menos compreensível.
A abertura e o encerramento de Um Filme de Cinema se dão em um cinema em ruínas localizado na Paraíba. Trata-se de uma licença romântica de Carvalho, mas que só faz sentido do ponto de vista poético e imagético. A luz que esses faróis dessa arte tão apaixonante irradiam só confirma que ela está viva, pulsando e em permanente reconstrução.
UM FILME DE CINEMA
De Walter Carvalho
Documentário, Brasil, 2015, 108min.
Em cartaz em Porto Alegre no Espaço Itaú (e, a partir de quinta-feira, dia 31, também no CineBancários).
Cotação: muito bom.