Filho do escritor colombiano Gabriel García Márquez, Rodrigo García fez carreira como cineasta nos Estados Unidos alternando projetos na televisão e no cinema. Em seus longas-metragens, é possível identificar como marca autoral a preferência por apresentar, pelo ponto de vista feminino, dramas marcados por rupturas e traumas familiares que lançam suas protagonistas em situações de deslocamento social e impasse afetivo.
Em Últimos dias no deserto, seu mais recente filme, García arrisca um passo mais ousado, no qual, de certa forma, mantém esse interesse temático. O diretor apropria-se em seu roteiro da passagem bíblica que relata os 40 dias e noites em que Jesus Cristo isolou-se no deserto da Judeia para orar e jejuar – antes de seguir para Jerusalém com sua missão evangelizadora.
O ator britânico Ewan McGregor encarna esse Jesus que García procura, em princípio, iluminar mais no aspecto humano e existencialista e não tanto no religioso. A provação física e espiritual cumprida pelo Messias no deserto é o rito de passagem do homem prestes a assumir sua condição divina. Mas essa jornada epifânica será marcada pela constante intervenção do Diabo (também vivido por McGregor) a questionar e a tentar Jesus com um desvio de rumo. Esse mesmo trecho do Novo Testamento, aliás, rendeu uma forte sequência em A última tentação de Cristo (1988), de Martin Scorsese.
Imprimindo em Últimos dias no deserto um ritmo contemplativo, por vezes exasperante, García coloca no caminho de Jesus uma família que o abriga em troca de ajuda no trabalho braçal: pai (Ciarán Hinds), mãe (Ayelet Zurer) e filho adolescente (Tye Sheridan). Será uma estadia tensionada pela doença da mulher à beira da morte e o conflito entre o patriarca que ali deseja ficar e o rapaz curioso para conhecer o mundo.
Apesar do bom trabalho dos atores, García perde o foco com a dramaturgia mais dinâmica que se forma diante de um impasse doméstico tão contemporâneo. A intensidade do potente drama intimista desenhado no começo, centrado no metafórico conflito do homem com seus demônios, acaba sendo pouco aproveitada. Fica diluída no empenho do diretor para sintetizar na convivência do viajante com aquela família o impacto transformador que Jesus viria a ter na formação dogmática do mundo cristão. Ao fim, García acaba cedendo à tentação de ressaltar aspectos bíblicos da narrativa. E também reiterar a figura de Jesus como pregador e filho que, assim como o garoto do deserto, busca honrar as expectativas do pai sobre seu destino.