Por Felipe Caldas
Doutor em Artes Visuais – História, Teoria e Crítica, artista e professor da Furg
A exposição Os Jardins que me Habitam traz a produção artística de cinco décadas de Wilson Cavalcanti (Pelotas, 1950), o Cava, que, além da atuação e trajetória como artista, é reconhecido como técnico impressor e também instrutor no Atelier Livre da Prefeitura de Porto Alegre, onde deu aulas de 1996 a 2020.
Temos a oportunidade de vislumbrar nesta mostra uma pluralidade de linguagens, sobreposições e hibridizações, em que é evidente o alargamento das noções tradicionais do que viria a ser pintura, gravura, desenho e objeto, travando um profundo diálogo com as próprias transformações do campo e do fazer/refletir artístico do Rio Grande do Sul nas últimas décadas.
A madeira, essencial para a constituição de matrizes para a xilogravura, compõe pinturas; o tecido das telas é colado sobre outros suportes; as imagens impressas são rasgadas, desenhadas, sobrepostas, transformam-se em objetos; as ferramentas e os desenhos ora perdem autonomia e se tornam parte de outro corpo. Os restos da casa incendiada de sua sobrinha são matéria-prima para a produção, enquanto encontra alternativas para a constituição de materiais e a viabilização de gravuras. A terra e a ferrugem transformam-se em pigmento; a literatura embala seus sonhos. As palavras tomam as imagens, e as imagens engolem as palavras. A pureza de um meio é exceção em sua trajetória.
Cava é herdeiro simultaneamente do expressionismo alemão e do Grupo de Bagé. Sofre influências de figuras icônicas, professores e colegas como Danúbio Gonçalves, Paulo Peres, Armando Almeida, Iberê Camargo, enquanto admira a obra de Antoni Tàpies e Will Eisner, mas igualmente de artistas ligados ao experimentalismo nos anos 1960 e 70, com a ênfase no processo e na renovação dos suportes e linguagens.
Essa influência experimental/conceitual costuma ser suprimida em um olhar ligeiro e parcial da produção, geralmente voltado ao artista gravador. Isso ocorre devido a um lugar marginal no sistema que a obra e a figura do artista ocuparam por décadas. Desse modo, a exposição pretende contribuir para uma perspectiva mais complexa a respeito de sua obra e trajetória.
É uma tarefa árdua buscar algum enquadramento histórico a respeito da produção de Cava, pois, nestas décadas de trabalho, foi dialogando e respondendo artisticamente ao mundo conforme este se transformava e as próprias discussões em âmbito artístico eram travadas. Na década de 1970, temos tanto um comentário mais agudo sobre a ditadura militar como obras que dialogam com o universo dos quadrinhos e com o realismo fantástico. Já nos anos 1980, um desenho que parte de um passado militar e ditatorial e produz séries de cabeças “torturadas” que chegam no limiar da abstração, enquanto dialogam com a produção da chamada Geração 80 e contribuem para a renovação da linguagem do desenho nestes prados. Naquela mesma década, emerge a série de gravuras Gaudina e outras em que perceberemos uma pujante influência da cultura popular, da gravura de cordel. Nos anos 1990 e 2000, veremos surgir os objetos, as pinturas-objetos e novas séries de gravuras, concomitante à sua atuação como arte-educador/instrutor no Atelier Livre, simultaneamente constituindo desenhos de forma ininterruptas.
Nestas cinco décadas, o trabalho de Cava se afirma como um comentário social e existencial articulado entre o erudito e o popular, o descritivo e o fantástico, de forte influência expressionista, manifestando-se em diferentes suportes e momentos. A dor é o fio condutor; a incompreensão e a revolta pelas injustiças sociais, o meio; e a finalidade é manter-se vivo aqui e agora.
Cava tornou-se o jardineiro de seu próprio jardim, por isto um utópico. O jardineiro não controla tudo, mas planeja, cuida, orquestra, apara, trabalha e, sob seu olhar, as flores desabrocham. O jardineiro criva o caos, busca o equilíbrio entre as partes, conhece a relação entre o ser e o meio, não se rende às intempéries e às determinações biológicas, mas age a partir delas.
O jardineiro se suja, se corta, transpira e sonha enquanto atua sobre a matéria, e a matéria atua sobre ele; e, assim, em uma simbiose, um transforma o outro, num jardim regado pela precariedade em terras de cinismo e preconceito.
Nesta exposição, vislumbramos parcialmente o jardim de um jardineiro de muitas faces e nomes – Cavalcanti com “i”, Will, Cava, Wiil Cava, Wilson Cavalcante –, cuja existência de resistência floresce.
Wilson Cavalcanti – Os Jardins que me Habitam
No Margs (Praça da Alfândega, s/nº), em Porto Alegre, até 18 de fevereiro. De terças a domingos, 10h às 19h. Entrada gratuita.