Enquanto pintava a Casa do Estudante Universitário da UFRGS, Brenda Klein ouviu vários questionamentos sobre quem eram as mulheres retratadas no mural de 27 metros de altura e cinco de largura que ocupa toda a lateral do prédio de nove andares na Avenida João Pessoa, no Centro Histórico de Porto Alegre. A pergunta vinha tanto de moradores quanto de quem passava por ali.
Desenhadas de cima para baixo, a pintora Anita Malfatti, a artista visual Zina Aita, a pianista Guiomar Novaes, a artista visual Regina Graz, a pintora Tarsila do Amaral, a escritora, poetisa, desenhista e cartunista Patrícia Galvão, também conhecida como Pagu, a cantora Elsie Houston e a atriz e diretora de teatro Eugênia Álvaro Moreyra têm rostos e histórias pouco conhecidos, mesmo para Brenda, que é artista e cursa Artes Visuais na UFRGS.
Elas são todas artistas brasileiras que fizeram parte do modernismo, que teve seu ápice no Brasil entre as décadas de 1910 e 1930. O movimento defendia uma arte nacionalista, que usasse elementos característicos do país, como as culturas negra e indígena, mas incorporando linguagem e estética das vanguardas europeias. Consolidou-se com a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, ainda hoje considerada um marco.
O trabalho de Brenda foi pensado justamente para um edital da Fundação Nacional de Artes (Funarte) que celebrava o centenário da Semana de Arte Moderna, completado no ano passado. A regra para participar era pintar um mural que contemplasse o tema. Ela foi a segunda selecionada entre 44 inscritos em todo o país.
— Eu também não conhecia muito essas artistas. Comecei a me informar a partir do edital, pois queria representar artistas mulheres que participaram do modernismo no Brasil. Então cheguei a esses nomes, mas foi chocante para mim fazer um mural gigante, com rostos de pessoas, e ninguém saber quem são. Agora, com esse mural, pelo menos vão se perguntar quem são elas — estima a artista de 23 anos.
Embora a maioria não tenha tido o alcance que tiveram figuras masculinas sempre ligadas ao modernismo, como os escritores Oswald de Andrade e Mário de Andrade, o nome de algumas resistiu ao tempo e atravessou décadas. Em alguns casos, como o de Pagu, tornou-se ainda mais forte nos dias de hoje.
— A Pagu se tornou um símbolo do feminismo brasileiro, da afirmação dos direitos das mulheres, e adquiriu um significado muito maior após a sua morte do que tinha em vida. Já a Tarsila do Amaral teve um reconhecimento grandioso em vida. Do ponto de vista visual, nenhum artista brasileiro tem o alcance que a Tarsila teve. O Abaporu é uma das obras de arte mais citadas e recriadas. Dos artistas modernistas, nenhum teve o impacto que a Tarsila teve — ressalta o doutor em História pela UFRGS Éder da Silveira, também professor de História na UFCSPA.
Brenda levou dois meses e meio entre o processo de criar o desenho digitalmente e pintá-lo na lateral do prédio, transformando-o no mural concluído em maio deste ano. Ela usou tintas acrílicas e impermeáveis, de longa duração, o que dará perenidade à obra, tornando-a menos suscetível ao desgaste do tempo. A estimativa é que permaneça por cerca de 20 anos decorando a Casa do Estudante Universitário.
Para mim, arte tem de ser democrática, acessível para as pessoas. Não é todo mundo que vai ao museu.
BRENDA KLEIN
artista visual
Adepta do muralismo, movimento artístico que invadiu as ruas centrais de Porto Alegre, ela acredita que os desenhos gigantes colorindo os prédios, à vista de qualquer um que estiver caminhando, tornam a arte mais acessível à população, dissipando a aura de sacralidade que adquirem quando estão dentro dos museus. Não à toa, batizou sua obra de A Poesia Existe nos Fatos.
— Para mim, arte tem de ser democrática, acessível para as pessoas. Não é todo mundo que vai ao museu. Mas se a obra estiver na rua e a pessoa puder ver enquanto está indo em direção ao trabalho, poderá fruir de arte, sentir alegria — reflete.
As mulheres invadindo o prédio
Ao finalizar o desenho, Brenda soube que o mural, pintado onde foi pintado, ganhava mais um significado. No passado, a Casa do Estudante Universitário não permitia o ingresso de mulheres — somente homens podiam viver no abrigo criado em 1970 para jovens sem condições financeiras, que precisavam de moradia gratuita para conseguir concluir um curso de Ensino Superior.
A militância de universitárias forçou uma mudança. Em 1980, diversas estudantes tomaram o prédio, em um episódio conhecido como "invasão feminina". Somente em abril de 1983, três anos após o protesto, foi aprovado o regimento que dava autorização legal para que elas também pudessem ter acesso ao prédio, conta a pró-reitora de Assuntos Estudantis da UFRGS, Ludymila Barroso:
— Isso é marcante. Era uma casa somente para homens. As mulheres eram proibidas ali. O mural da Brenda, além de toda a representação dessas artistas, também marca a luta das mulheres dentro da UFRGS. Foi coincidência, mas o mural acaba marcando essa história também. Além do mais, ficamos muito contentes por alguém se interessar em trazer cor, arte e vida a um prédio antigo.
As artistas modernistas retratadas no mural
Anita Malfatti (1889-1964)
Pintora, desenhista, ilustradora e professora. Teve sua primeira grande exposição individual em 1917. Participou da Semana de Arte Moderna de 1922. Autora das telas A Boba (1915) e A Estudante Russa (195). Foi bolsista do governo no Exterior e trouxe para o Brasil as marcas do que a vanguarda artística europeia fazia naquele período.
Zina Aita (1900-1968)
Pintora, ceramista e desenhista. Fez ilustrações para a Klaxon, revista modernista da época. Já tinha feito duas exposições individuais antes de participar da Semana de Arte Moderna de 1922.
Guiomar Novaes (1894-1979)
Pianista de música erudita com carreira internacional. Já famosa na época, ela foi convidada a participar da Semana de Arte Moderna de 1922 para levar mais público ao evento.
Regina Graz (1897-1973)
Pintora e decoradora. Trabalhou por muito tempo com decoração e tapeçaria. Estudou em Genebra, na Suíça. Participou da Semana de Arte Moderna de 1922.
Tarsila do Amaral (1886-1973)
Pintora e desenhista. De família rica, morou na Europa. Tornou-se conhecida por circular em meios muito badalados. Não participou da Semana de Arte Moderna de 1922, pois vivia em Paris, onde estudava. Autora de A Lua (1928), Abaporu (1928), Antropofagia (1929), Cartão Postal (1929) e Operários (1933).
Patrícia Galvão, a Pagu (1910-1962)
Tradutora, escritora, poetisa, ilustradora, jornalista e militante do Partido Comunista Brasileiro. Participou de greves e foi presa pela polícia durante o governo Getúlio Vargas. Autora de Parque Industrial (1931), Autobiografia Precoce (1940) e Safra Macabra (1944). Não participou da Semana de Arte Moderna de 1922.
Elsie Houston (1902-1943)
Cantora lírica. Fazia pesquisas sobre cantos populares brasileiros, sendo pioneira na gravação de um disco com músicas relacionadas às religiões afro-brasileiras. Suas músicas podem ser ouvidas no Spotify. Não participou da Semana de Arte Moderna de 1922.
Eugênia Álvaro Moreyra (1898-1948)
Jornalista, atriz, diretora de teatro e militante de esquerda. Fumava em público, algo inaceitável para a época, e vestia-se com roupas masculinas. Não participou da Semana de Arte Moderna de 1922.