Por Alex Baradel
Curador e responsável pelo acervo fotográfico da Fundação Pierre Verger
Pierre Fatumbi Verger (1902-1996) foi um dentre os muitos viajantes que, através da sua obra, conseguiu criar links entre diversas culturas e as pessoas a estas pertencentes. Sua vida e obra fotográfica se nutriam desse multiculturalismo: viveu em diversos continentes, falando vários idiomas, inclusive não ocidentais.
Globalização, multiculturalismo e transculturalismo eram, na época de suas viagens, conceitos ainda abstratos; e os preconceitos raciais, simbolizados pelos regimes coloniais. As desigualdades tinham respaldo em inúmeras constituições. E a diversidade cultural – base da riqueza do nosso mundo –, em vez de ser reconhecida, era muitas vezes desprezada.
Grandes desigualdades continuam em nossa época, mesmo que oficialmente reprovadas. A globalização favoreceu o acesso ao outro e o conhecimento de outras culturas. Entretanto, impôs a divulgação massiva das culturas ocidentais dominantes, uma forma única de viver e de pensar, em detrimento de muitas culturas que correm o risco de desaparecer.
A obra fotográfica de Verger, realizada no século 20 e baseada na busca do encontro com o outro, nos toca pela sua diversidade e pelo aspecto inovador da vida de um homem (Pierre Verger) que nasceu ocidental, renasceu africano (Fatumbi) e passou o fim da sua vida na América do Sul, na Bahia, após muitas viagens e imersões nas culturas dos cinco continentes.
Embora proveniente de uma potência colonial – a França, um país cuja importância cultural atual provém em parte, paradoxalmente, da diversidade étnica da sua população (composta também por pessoas oriundas das ex-colônias) –, Verger manteve uma relação com o não ocidental que ultrapassava o mero interesse pelo outro. Desiludido pela sociedade em que viveu por mais de 30 anos, não buscava registrar o outro só para apresentá-lo a um público ocidental. Pelo contrário, estava em busca de outras formas de viver, de conceber o mundo, desligando-se da relação materialista que caracteriza a modernidade ocidental. Buscava uma filosofia de vida, uma espiritualidade, que viu nas culturas e religiões não monoteístas, notadamente africanas e afrodiaspóricas. E foi com esse espírito que viajou e fotografou as culturas dos cinco continentes.
No conjunto da produção fotográfica de Verger, destacam-se temáticas gerais, como cenas de cotidianos, especialmente feiras e portos, cerimônias religiosas ou não e paisagens urbanas. E algo que poderíamos chamar de retrato, embora não seja a melhor definição do tipo de fotografia que fez.
Na cultura ocidental, o retrato aparece já nas moedas gregas. E, durante muito tempo, foi utilizado para valorizar personalidades importantes: nobres, religiosos ou oligarcas. A partir do século 12, a pintura flamenga, com destaque para Robert Campin, começou a dar visibilidade a outras personagens, integrando homens simples e seu cotidiano. Séculos mais tarde, pintores românticos, como Delacroix, e impressionistas, como Gauguin, passaram a trazer personagens pouco destacados até então: pessoas oriundas de outras culturas, como norte-africanos, asiáticos e polinésios.
Verger nunca se considerou artista. Não usava essa palavra para descrever seu trabalho. E dificilmente destacava a influência de outros criadores. Falava, por exemplo, que não queria ver o trabalho de outros fotógrafos para não ser influenciado.
Quanto aos seus “retratos”, alguns seguem o entendimento amplo da palavra. Contudo, Verger não entendia como retrato as imagens que realizou, preferindo usar sinônimos em francês: tipos (types), cabeças (têtes) e, às vezes, títulos precisando o gênero da pessoa retratada ou seu pertencimento étnico.
A palavra “tipos” parece a mais adequada e interessante, já que foi com ela que classificou a maior parte das suas fotografias. Em francês, types pode ter dois sentidos: “rapaz” ou “conjunto de traços característicos de uma categoria de pessoa ou de coisas”. Interessante considerar a segunda definição, que abre outro entendimento dos “retratos” de Verger: fotos não tanto destinadas a destacar a personalidade de um indivíduo, mas, sim, os aspectos físicos de pessoas que, colocadas lado a lado, tornam-se um mosaico e caracterizam a diversidade cultural.
E talvez seja assim, agrupados, que os esses trabalhos de Verger se afastem mais do sentido histórico da palavra retrato. Não sendo expressão individual dos traços de um indivíduo, mas a expressão coletiva de um conjunto de pessoas retratadas individualmente, destacando as suas similitudes e diferenças.
Todos Iguais, Todos Diferentes? e Orixás
Exposições de retratos de Pierre Fatumbi Verger com curadoria de Alex Baradel. No 1º andar do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – Margs (Praça da Alfândega, s/nº, em Porto Alegre). Abertura neste sábado, às 10h30min, e visitação até outubro, de terça-feira a domingo, das 10h às 19h (último acesso 18h). Entrada franca.