Por Gabriela Motta
Curadora, crítica e pesquisadora, doutora em Teoria, Ensino e Aprendizagem da Arte (USP), professora substituta na UFPel
Casa asa. Casa pele. Casa casca. Quantas dobras de sentido cabem nesse lugar tão caro ao ser humano? Que lembranças habitam uma morada?
Com uma poética traçada pelos caminhos da memória e da cultura do povo, Marcelo Silveira reorganiza vestígios materiais e simbólicos tanto de sua própria história quanto das pessoas e dos lugares por onde ele passa, permitindo a esses rastros uma renovada forma de vida. Com isso, também comenta e se posiciona frente aos processos de apagamento cultural que vivenciamos nas grandes cidades. Vidros de perfume vazios, revistas antigas, peças de madeira descartadas transformam-se em caleidoscópios de sentidos, ampliando nosso olhar sobre tudo a nossa volta.
Em C+asa isso acontece a partir da noção de casa, esse lugar de acolhimento e segurança, de memórias e segredos, de desejo e intimidade, porto seguro do afeto a guardar sempre uma ambiguidade. A ideia dessa exposição surge quando a artista Vilma Sonaglio, idealizadora e gestora do V744atelier, reformava o espaço, uma casa erigida na década de 1960 e que preserva em sua arquitetura rastros de uma estética modernista. Nesse processo, ao deparar com as sobras de esquadrias e aberturas que não poderiam mais ser utilizadas, Vilma reconhece em tal material o potencial poético que teriam nas mãos de Silveira.
Daí, sob a ótica da obra desse artista, surge uma reflexão pulsante sobre o que de fato serve e não serve, descarta-se ou não, como lidamos com as sobras do cotidiano, das cidades, das transformações. A casa dos afetos pode também ser mal-assombrada, e, nesses fluxos de emoções, tempos e poéticas díspares, atingir o sinestésico, em que as palavras já não são suficientes para designar a amplitude da forma.
Dos cantos dos cômodos, do quartinho dos fundos, das gavetas abarrotadas, das casas improvisadas de beira de estrada, da literatura, dessa casa específica à qual nos referimos agora, do seu ateliê-escola em Gravatá, Silveira vai recolhendo vestígios e impressões e arrastando-as para o centro da sala. Eu diria que o artista arruma as coisas – objetos, desenhos, instalações – com “roupa de domingo”: é bonito de se ver, dá vontade de tocar, alegra o coração e enche a cabeça de pensamentos.
Em C+asa, em uma das paredes do espaço, um conjunto de desenhos esquemáticos de uma moradia feitos por seu aluno Heleno são como a reafirmação cotidiana de um posicionamento, a busca constante por dar corpo a uma ideia que abriga, endereça um desejo – a própria casa desenhada, a atenção dispensada ao menino.
No lado oposto, uma composição entre os trabalhos Ata e Lições Modernas preenche a totalidade da parede. São folhas completamente saturadas por letras Sete e letras Tone, antigos recursos gráficos utilizados por designers na confecção de cartazes e anúncios. A parede ecoa um silêncio ensurdecedor de muitas mãos reunidas na produção do trabalho, das sobras e utensílios de um tempo que perdem sua utilidade e encontram outras formas de sobreviver por essa operação poética.
No corredor de entrada, peças remanescentes de uma série chamada Roupas de Casa são como as sementes que resistem à violência do nosso tempo, germinado um futuro de sonhos renovados. Já no centro da sala, uma instalação feita afinal com algumas das sobras da casa que acolhe a exposição nos coloca diante do avesso da arquitetura: o que era borda vira centro, o que era canto vira verso. A casa aberta convida outras imagens para dentro de si. As formas se complementam, nunca se anulam, criam um palimpsesto de circuitos sensoriais.
Parafraseando Borges, uma casa é todas as casas – e isso a obra de Silveira faz, difundindo sobre o modernismo estilhaços de outros constructos, desvelando o passado, o presente e o futuro dessa habitação que nos acolhe agora.
Por enquanto é isso.
A exposição
C+asa, intervenção do artista plástico pernambucano Marcelo Silveira, pode ser visitada no V744atelier, que fica na Rua Visconde do Rio Branco, 744, bairro Floresta, em Porto Alegre. Aberta desde maio, a exposição tem previsão de encerramento no dia 22 de julho. Visitação de quartas a sextas-feiras, das 14h às 17h. Outros horários de visita são contemplados com agendamento prévio por mensagem direta no instagram @V744atelier. Entrada franca. Classificação etária: 12 anos.