Na noite da última sexta-feira (20), a Parada Livre de Porto Alegre promoveu um debate sobre o fechamento da mostra Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, realizado no Sindicato dos Bancários. Na mesa estavam o curador da exposição, Gaudêncio Fidélis, o desembargador do Tribunal Regional Federal (TRF4) Roger Raupp Rios e o procurador do Ministério Público Federal Paulo Cogo Leivas. A mediação foi da radialista Kátia Suman.
Gaudêncio foi o primeiro a falar, ressaltando que o fechamento da Queermuseu impediu que muitas pessoas vissem as obras e, por isso, não seria legítima a crítica. Para ele, o cancelamento da mostra "fomentou o processo difamatório".
– Quando pegamos aquelas quatro obras que foram utilizadas para condenar a mostra, o que está em questão não é só a narrativa que foi construída, mas também a que foi roubada delas. Na arte, nós sabemos que não pode se dizer que uma garrafa é um copo. Então, essa difamação toda é contra os próprios conceitos da arte. A obra da Adriana Varejão por exemplo (Cena de Interior II). Esses bandidos, além de se recusarem a enxergar nela o retrato do que foi o processo de colonização do Brasil, ainda imputam a ela características que não tem. Esses indivíduos são covardes. Estamos falando de obras que foram roubadas de sua natureza artística por grupos fascistas, que não reconhecem as temáticas das mesmas – declarou.
Depois do curador, Paulo Cogo Leivas disse que não existe democracia sem liberdade ou sem proteção dos direitos humanos. O procurador afirmou que "caso haja uma derrocada formal da democracia, nada mais será do que uma formalização de uma situação que já vivemos hoje em dia".
– A constituição garante a liberdade artística e não admite qualquer forma de censura. Não se pode fazer nenhuma definição restritiva do que é arte. Existe limite a liberdade artística? Toda liberdade tem limites. Mas toda a limitação tem que ser baseada em fatos concretos que limitem os direitos dos outros. No caso do Santander Cultural, não houve violação nenhuma de direitos de crianças e adolescentes.
O procurador dissertou ainda sobre as denúncias de pedofilia na mostra:
– Eu sempre fui uma pessoa que defendeu os direitos fundamentais das crianças. Por isso, não permito que minha filha assista televisão durante a noite. Não permito que escute músicas com tom erótico. Defendo classificação indicativa, mas nunca vi movimentos conservadores defenderem as crianças, por exemplo, dos anúncios de cerveja, altamente sexualizados. A liberdade artística é um direito fundamental, mas a questão hoje é mais profunda. O que está em risco no Brasil é a própria democracia.
As falas seguiram com o desembargador Roger Raupp Rios, que reforçou o temor pela democracia e a importância da arte e dos espaços para o debate público.
– Nós todos somos cidadãos que estamos presenciado situações de cerceamento das liberdades e da democracia. No Brasil, nós temos uma realidade dura e uma tradição antiga que teima em confrontar as democracias e os direitos. Algumas sociedades tidas como mais desenvolvidas nos direitos humanos, como os Estados Unidos, por exemplo, enfrentam frequentemente situações de racismo. Então quando a existência das minorias é indecente ou fere os princípios dos conservadores, é comum que haja uma confusão de argumentos e até de sentimentos das pessoas. A partir daí é que as pessoas utilizam a moral e os bons costumes para até mesmo findar vidas. Quando não há mais espaço para o debate público, o caldo de confusão de argumentos está posto – avaliou. – Em Porto Alegre, nós temos um potencial que há alguns meses atrás negou atendimento médico para uma criança por causa da ideologia política do pai ou da mãe. Na Queermuseu, é a mesma coisa. – completou.
O desembargador seguiu refletindo sobre liberdades plurais:
– Uma coisa, no convívio das liberdades plurais, é se desagradar de alguém ou de algo. Mas é da vivência dos adultos conviver com o que não se gosta. As crianças, que querem dominar o mundo e mandar nos demais, precisam ser contidas. O sinal vermelho se acende quando alguém me anula. Por isso a proibição constitucional à censura artística, pois isso precede a eliminação sem discussão.
Tumulto
Um integrante do MBL, que havia gravado vídeos no Santander Cultural condenando a Queermuseu, entrou no SindBancários acompanhado de mais três militantes. Com o celular em punho, ele chegou a fazer provocações aos participantes da mesa e ao público. Após sair do ambiente do debate, o manifestante continuou protestando na sede do sindicato. A partir daí, o debate ficou tumultuado, e houve tensão na saída do local – com público e manifestantes trocando acusações.