Para quem passava pelo corredor, era difícil conter a curiosidade e não olhar para dentro da imensa sala branca. E com razão: não é todos os dias que uma pirâmide feita com escovas de limpeza é erguida em um dos principais centros de comércio popular de Porto Alegre.
A instalação integra a mostra Estado Sul, do artista plástico Mano Penalva, e é a primeira de uma iniciativa que pretende tornar o Pop Center também um espaço de arte. A ideia nasceu durante uma viagem à França da diretora institucional do centro comercial, Elaine Deboni. Em Paris, ela conheceu o marchand francês Frank Marlot, que se interessou pelo empreendimento de Elaine e topou ser curador de uma residência artística no local.
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A pirâmide de Penalva começou a ser construída no final de semana com previsão de entrega para amanhã, com a presença de Marlot. Além da pirâmide, o artista trouxe três peças de seu acervo e confeccionou outra obra exclusiva para a mostra de Porto Alegre. Todas dialogando com a proposta de ressignificar elementos presentes no cotidiano – de prosaicas sacolas de compras a massageadores de bancos de automóveis.
– Esses objetos têm uma função original no mundo. Neste caso, são escovas de lavar roupa. Mas, partir do momento que eu as trago para o campo da arte, passam a ter uma nova funcionalidade: viram objetos de questionamento, de problematização – explica Penalva.
Lojista há mais de sete anos no Pop Center, Elaine Soares Ferreira enxerga a obra de Penalva por outro viés. Observando o cavalete que sustenta um modelo em menor escala da pirâmide original, ela comenta que ali está o passado e o presente de sua própria história e dos colegas:
– Esse cavalete lembra como eu e muitos daqui começaram, vendendo nossos produtos na rua. Depois, vieram as barracas. Agora, estamos aqui com as nossas lojas, no Pop Center. Então, pra mim, está tudo interligado.
A mostra de Penalva ocupará duas áreas do terceiro andar do centro comercial. Somente a pirâmide de escovas deve tomar uma sala inteira. Além do próprio artista, estão trabalhando na instalação os lojistas do Pop Center e, no início da semana, turmas de estudantes. É trabalho pesado (são 40 mil escovas, doadas pela empresa Bettanin, que precisam ser empilhadas até terça), mas que vendedores como Francisco Pereira Todi encaram com prazer.
– Cheguei de manhã e só vou embora na hora de fechar – disse. – Um trabalho como esse precisa ser valorizado, porque vai atrair gente que não vem aqui porque tem uma imagem errada de nós.
Essa busca pela valorização e conexão com o popular é outra constante no trabalho de Penalva. Sua outra obra criada durante o período de residência no Pop Center exemplifica bem essa trajetória: sacolas de ráfia serigrafadas com um homem-placa ou uma vendedora de água, figuras extremamente populares na região de comércio popular de Porto Alegre.
– Logo que eu cheguei, fui para o Mercado Público e comprei uma sacola que tinha a figura do Laçador. Chegando aqui no Pop Center, conversava com uma lojista quando ela apontou para a sacola e me perguntou se eu não podia fazer algo na mesma linha, mas que tivesse a ver com a história deles – comenta Penalva. – O Laçador é uma figura que representa o popular para o Rio Grande do Sul, mas é uma figura impostada, quase Luis XV. Então esse trabalho amplia, de alguma forma, essa iconografia.
A construção da pirâmide continua nesta segunda-feira, das 10h às 17h, e é aberta ao público. A mostra Estado Sul será aberta nesta terça, a partir das 14h, e pode ser visitada até o dia 28 de abril no Pop Center (Júlio de Castilhos, 235). Leia abaixo uma entrevista com o artista:
Quem é Mano Penalva?
Sou de Salvador, Bahia, atualmente trabalho em São Paulo e, nos últimos 10 anos, me dedico à pesquisa de comportamento e à arte. Nos últimos cinco anos, só o trabalho de artista. Só que trago esse olhar atento do pesquisador para os trabalhos. Tenho um olhar para as coisas do mundo, e a gente passa por um processo de proliferação de coisas no mundo, seja por uma hiperprodução chinesa, seja do próprio descarte. A indústria, a todo instante, fala "troque sua cozinha inteira para uma de inox. Agora, vermelho. Agora, verde". A partir dessa junção da hiperprodução com o descarte existe um tombamento do meu olhar com essas coisas que estão no mundo.
E por que Estado Sul?
A ideia de Estado não é de estado físico, mas de uma forma de ser. E o sul não é o Sul do país, não é o Sul do Brasil, mas o pensamento latino-americano. Esse recorte de hemisférios pode ensinar coisas para o mundo, porque existe aqui uma forma diferente de ser. Essa exposição é um grande convite para pensar a partir do Sul e levar essa mensagem: o que é nosso? Como a gente pode fazer pra ser mais sustentável e não considerar só o estrangeirismo?
Como foi o processo para a criação dessas obras?
Essa exposição é composta por trabalhos que já existem na minha produção e que tem relação com essa questão do sul. Meu trabalho inteiro é em cima disso, sobre esse povo que pensa dessa forma. Para o Estado Sul, fiquei 15 dias em Porto Alegre, fui entender as redondezas do PopCenter. É muito engraçado, todo Uber que eu pego, eles são assim "Cara, cuidado, lá é muito perigoso!". E eu até entendo que possam ter muitos furtos e coisas, mas faz parte do meu trabalho entender o imaginário do perigo também. Porque o próprio imaginário do camelódromo pode ter uma carga negativa, mas, por outro lado, pode ter uma carga positiva: pessoas em busca de produtos que são mais baratos, não necessariamente furtados ou qualquer coisa disso, mas mais baratos. Passei esse tempo aqui e venho pensando muito sobre essa figura do popular, o que é ser popular.
De que maneira a pirâmide de escovas se encaixa neste conceito?
Todas as pessoas que estão contribuindo para a construção desse trabalho estão convidadas a colocar sonhos deles, em papeizinhos, dentro da escova. Quando chegar no topo desse trabalho, vai se formar um grande mar de comunicação deles. É um poder de síntese que a arte tem. No topo da obra, vai estar toda a comunicação, toda a arte gráfica desenvolvida ordinariamente, cotidianamente por essas quase 800 pessoas que trabalham aqui. É o símbolo de algo muito maior, da construção do sonho, da sustentação.
E falta muito para acabar?
Tem um trabalho muito árduo ainda. Foram colocadas apenas 200 caixas de escova até agora, ainda faltam mais 520 caixas. Funciona como se fosse uma orquestra, volta e meia a gente precisa reconfigurar as escovas, porque elas não estão bem encaixadas, e, se você não fizer perfeitamente, ela não se sustenta. Tem uma série de metáforas, mas eu me preocupo muito com a estética e estou supercurioso para ver como isso vai ficar pronto. Vamos ficar até o dia 17 à noite recebendo qualquer pessoa que queira ajudar.