A feira a céu aberto descia a Rua da Ladeira a partir da esquina com a Andrade Neves até a Rua da Praia, no centro da Capital. Não havia barracas. Sandálias, bolsas e carteiras de couro, além de brincos, pulseiras e colares, eram expostos em panos estendidos sobre a pedra do calçamento.
Quase meio século depois, os hippies da Ladeira — como ficaram conhecidos — resistem à passagem do tempo entrincheirados alguns passos adiante, mais precisamente, no corredor norte da Praça da Alfândega, entre Andradas e Sete de Setembro. Em comum, encaram o artesanato como filosofia de vida:
— Sempre fui aventureiro. Aos 12 anos, já tinha fugido de casa duas vezes — diz Roberto Ansolin, o Cabeça, de 66 anos.
A bem da verdade, o primeiro ponto fixo de vendas dos artesãos foi a Praça Dom Feliciano, em frente à Santa Casa. Sérgio Garcia, o Black (o apelido se deve à vasta cabeleira black power que lhe cobria a cabeça), de 65 anos, havia chegado há pouco de Rio Grande. Por aquela época, dormiu ao relento e viajou de carona pelo Brasil e pela Argentina.
— Eu era solto e não existia risco em dormir em banco de praça. Não tinha roubo nem assalto — relembra Garcia.
Depois, os artesãos se abancaram na Rua da Praia, entre Doutor Flores e Vigário José Inácio. Além de disputar espaço com camelôs, ficavam de olho na fiscalização da prefeitura.
— Um dos fiscais tinha dois metros de altura. A gente via de longe e saía correndo — conta Sidnei Duarte, de 68 anos.
Pela metade dos anos 1970, eles se fixaram na descida da Ladeira. Foi a melhor escolha – mal dava tempo de voltar para casa e produzir novos artigos para ter o que vender no dia seguinte. No auge, a feira esticou-se até a Sete de Setembro. Quase uma centena de expositores repartia o local.
— Precisava chegar por volta das três horas da madrugada para garantir lugar — conta Ozi Correa, de 68 anos, que ainda hoje produz chapéus e bonés à mão, embora as vendas tenham diminuído desde que passou a enfrentar a concorrência dos manufaturados chineses.
Em 1986, a prefeitura deslocou os artesãos para a parte da Sete de Setembro que atravessa a Praça da Alfândega. A mudança para a área atual se deu em 2009. A ideia do Executivo municipal era alocá-los no Camelódromo, na Avenida Júlio de Castilhos, mas metade da turma recusou a oferta.
— Lá eu ia ser só mais uma — diz Laci Beatriz Soares, que chegou à Capital em 1983, com 16 anos de idade, vinda de Taquara.
À época, com um casal de amigos, ela aprendeu a produzir bijuterias, mas depois se dedicou ao tingimento de tecidos. Laci conta que suas roupas têm um estilo roots (termo associado a um modo de vida alternativo) e não há uma peça sequer semelhante a outra.
— Se o cliente achar outra igual, dou a minha de presente.
Atualmente, os 44 artesãos que não arredam pé da Alfândega se consideram “heróis da resistência”, conforme as palavras de Sidnei. Têm consciência de que estão inscritos na história da cidade, mas se queixam da falta de reconhecimento. Acreditam que, com um pouco mais de atenção do poder público, podem ajudar a transformar a praça em ponto turístico, antes que seja tarde.
— Isso aqui está acabando e não é só porque o pessoal compra menos artesanato.
Os antigos artesãos envelheceram e as novas gerações não se interessam pelo ofício —afirma Cabeça. Aposentado por idade pelo INSS, Cabeça gostaria de ter guardado dinheiro para ter “um carrinho ou uma casinha melhor”, mas não maldiz a sorte:
— Escolhi curtir a vida com uma liberdade que a maioria das pessoas não teve. Até hoje, sou assim. Por isso, não me arrependo.