Na comoção causada pela repentina morte de Gal Costa, há cerca de dois meses, muita gente ficou curiosa ao descobrir que ela era chamada de “gaúcha” pelo amigo Gilberto Gil. Há versões de que era só uma zombaria da intimidade dos baianos.
— A gente brincava que era uma dupla caipira: Jiló e Gaúcha — comentou Gil.
Poucos sabem, no entanto, que ela tinha mesmo uma conexão com o Rio Grande do Sul. O médico Afonso Pena — irmão mais velho de Mariah, mãe da cantora — passou mais da metade de sua vida em Santiago do Boqueirão, na região central do Estado. Nascido em Salvador, em 1901, ele se formou no Rio de Janeiro, em 1924, e depois — de espírito aventureiro — embrenhou-se em rincões do Centro-Oeste. A certa altura, cansado das andanças, consta que teria jogado uma pedrinha sobre o mapa do Brasil para decidir onde fincar raízes. A pedra deslizou até parar sobre Santo Antônio das Missões (à época, distrito de São Borja), onde abriu consultório.
— Como não existia médico nas redondezas, as pessoas vinham de outras cidades para curar suas doenças — conta o advogado Marcelo Pena Noronha, de 55 anos, neto de Afonso.
Foi assim que o tio da Gal conheceu Zaida, 14 anos mais jovem, que morava em uma fazenda no interior de Itacurubi e viera acompanhar a mãe para uma consulta. Encantado com a moça alegre e bonita, Afonso se casou com ela (tiveram três filhas) e se radicou em Santiago.
Décadas depois, ao visitar os parentes, a mãe de Gal assegurou que não havia visto antes céu tão azul quanto o do Sul, conforme o sobrinho-neto. Em contrapartida, mais de uma vez, Marcelo viajou com os pais, de fusca, até o Rio de Janeiro. Se o tom azulado do firmamento sulino havia cativado Mariah, o ambiente hippie do apartamento de Gal no Morro do Vidigal impressionou os gaúchos:
— Lembro dos pufes espalhados pelo chão, dos quadros psicodélicos nas paredes e do violão no canto da sala — recorda Marcelo.
Gal jamais veio até Santiago, mas ligava para receber e dar notícias. Marcelo atendia ao telefone fixo:
“Sua mãe está? Aqui é a Gracinha”, dizia a cantora, usando o apelido que a identificava na família para falar com a prima Jacira.
Além da geografia, a grafia separava os familiares — sob a alegação de que, como médico, precisava assinar uma infinidade de receitas todo santo dia, Afonso achou por bem facilitar a tarefa, indo até o cartório para retirar um dos “n” de Penna (sobrenome original da família). Ele faleceu em 1982.
— Era um sujeito de pouca prosa, que tinha um Chevrolet preto, igual àqueles dos filmes dos anos 1940 — revela Neltair Abreu, mais conhecido como Santiago, um dos cartunistas brasileiros mais premiados no Exterior.
A família de Santiago morava ao lado da casa dos Pena. Certo dia, ao avistar o desenhista (com seus oito ou nove anos de idade) rabiscando as pedras da calçada com um caco de telha, o doutor Afonso pediu que fizesse uma caricatura dele. O baiano gostou tanto do “retrato” que prometeu lhe dar um presente. Empolgado, o guri bateu à porta do consultório, mas ficou um tanto decepcionado ao descobrir que o regalo era um “flamante vidro de vermífugo”.
— Ali soube, precocemente, que arte não dá dinheiro, só elogios — diverte-se.
O tio da Gal é um dos personagens do livro A Menina do Circo Tibúrcio e Outros Causos Desenhados, que Santiago lançou pela Libretos Editora, em 2017.