Era só o que faltava. Cantora, bailarina, boêmia, garçonete e cozinheira, a Nega Lu – personagem irreverente, que marcou a cena cultural e boêmia da Capital entre as décadas de 1970 e 1990 – virou samba-enredo do carnaval de Porto Alegre. Ela será o tema do desfile de estreia da Sociedade Beneficente Cultural Realeza na Série Ouro, com direito a samba-enredo composto pelo ator e humorista carioca Marcelo Adnet, que também é músico e carnavalesco.
— A Nega Lu é um diamante multifacetado, única e plural, uma personagem fantástica que revela a identidade de Porto Alegre sob uma perspectiva diferente da tradicional — diz Adnet.
Nascida com o nome de Luiz Airton Farias Bastos, ela se assumiu como Nega Lu no curso Clássico do Colégio Infante Dom Henrique, em 1970, aos 15 anos de idade. Assídua frequentadora da Esquina Maldita (gueto boêmio na Osvaldo Aranha com Sarmento Leite, nos anos 1970), foi solista dos corais da UFRGS e da Ospa, além de crooner da banda de blues Rabo de Galo e bailarina clássica da escola da russa Marina Fedossejeva. Foi também garçonete do bar Doce Vício e protagonista das primeiras Paradas Livres na Capital, na década de 1990. Como se fosse pouco, ainda desfilou como rainha e madrinha da Banda da Saldanha, além de participar do carnaval de Entre Rios, na Argentina. Um currículo e tanto.
Não haveria melhor escola carnavalesca para acolher personagem tão carismática (que faleceu em 2005). Fundada em 1976, ao pé da Vila Maria da Conceição, no bairro Partenon, a Realeza se especializou em enredos que exaltam a cultura afro-brasileira. Em 2022, o tema era sobre o Massacre dos Porongos (emboscada das tropas imperiais que vitimou mais de uma centena de soldados negros na Guerra dos Farrapos, em 1844).
— É dever de toda escola de samba, ainda mais se ela for enraizada em bairro periférico, trazer informação e propor debates para a comunidade — diz o vice-presidente Maurício Corrêa Santos.
Neste ano, a apresentação da Realeza vai encerrar o carnaval no Complexo Cultural do Porto Seco, na madrugada de 5 de março, a partir das 4h 50min, com a participação de 900 componentes (dos quais 80% moram na Vila Maria da Conceição), 17 alas e três carros alegóricos. Santos destaca o acolhimento da comunidade aos movimentos LGBT+, que estarão representados no desfile.
— O carnaval é um ambiente de pluralidade e diversidade, sem discriminação de classe, cor ou gênero. O ideal é que isso se multiplique para outros espaços da sociedade — afirma.
Carnavalesco dos pés ao pescoço, Adnet vai compor sambas para outras cinco escolas, em 2023 – São Clemente e Botafogo, do Rio; Dragões da Real e Estrela do Terceiro Milênio, de São Paulo; e Independente de Boa Vista, de Cariacica, no Espírito Santo. A conexão com a Realeza se deu ao se sentir impactado pelo enredo do ano passado, quando assistiu ao desfile pelo YouTube. Casado com a atriz gaúcha Patrícia Cardoso, em seguida veio a Porto Alegre para apresentar a filha Alice aos avós maternos. Então, aproveitou para beber uma cerveja com os dirigentes da agremiação no bar Quebra Galho, próximo ao local de ensaios, ocasião em que recebeu o convite para compor o samba-enredo.
— Foi tudo meio mágico e por acaso. É impressionante como o samba faz a gente se sentir à vontade, em qualquer lugar — comenta Adnet.
Desde a fundação, a Realeza ensaia a céu aberto, na esquina da Rua Carlos de Laet com a Carneiro Ribeiro – a área ganhou o nome de Encruzilhada do Samba. No final de 2022, a Câmara de Vereadores regulamentou a cedência de um terreno da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, junto à Praça Demétrio Ribeiro, para a escola construir uma quadra. Falta agora o prefeito Sebastião Mello assinar o Termo de Permissão de Uso para que o sonho se transforme em realidade:
— A ideia é que, já para o carnaval de 2024, a gente possa ensaiar lá — diz o vice-presidente da Realeza.