Há uma regra básica para quem frequenta a boemia: é preciso se dar bem com o porteiro. Não é apenas a pessoa que pode liberar o acesso quando a fila dobrar a esquina ou a casa estiver lotada. É também quem conhece a vida de todo mundo e sabe guardar segredos — ou não. No caso de Antonio Padeiro, de 46 anos, que trabalhou entre 1992 e 1996 na porta do bar Garagem Hermética (na subida da Rua Barros Cassal, quase esquina com Avenida Independência, na Capital), as lembranças se transformaram em livro. Publicado pela Editora VamoDale, com prefácio de Luís Augusto Fischer e orelha de José Falero, BARROS386 – Crônicas de Garagem deve chegar às livrarias na segunda quinzena de janeiro. É uma releitura crítica e bem-humorada do reduto underground frequentado, nos anos 1990, por roqueiros, cineastas, escritores e boêmios descolados em geral.
Padeiro foi contratado aos 17 anos, na primeira noite que visitou o Garagem. Ele lembra dos detalhes — era um show da Borboleta Negra (parte dos músicos formaria, depois, a Comunidade Nin-Jitsu).
A certa altura, a plateia invadiu o palco e as caixas de som começaram a balançar. A banda ameaçou parar de tocar, mas ninguém arredou pé. Em um gesto instintivo, Padeiro subiu ao palco e expulsou todo mundo dali para que o show tivesse prosseguimento.
— Tinha vindo de Canoas e não ia arriscar jogar fora o dinheiro do ingresso.
Um dos sócios do Garagem, Ricardo Kudla, se impressionou com a performance do garoto e o contratou imediatamente para vigiar a porta do bar.
Os primeiros tempos foram de encantamento:
— Tudo parecia mágico. Existia um senso de liberdade que nunca tinha visto na vida, aquilo era muito envolvente.
Com o correr das noites, ele passou a considerar o público do Garagem "aberto na teoria, na prática nem tanto". Assim, BARROS386 – Crônicas de Garagem desmistifica a imagem do bar como uma redoma em que preconceitos de classe, raça e gênero ficavam do lado de fora. Não faltam registros de racismo, machismo e homofobia, mostrados do ponto de vista de quem ocupava um posto de observação privilegiado — a porta de entrada do bar. Padeiro afirma que havia um "preconceito velado", de modo que, "sempre que um preto entrava, alguns olhares buscavam saber se era ladrão ou traficante".
Em seguida, ele pergunta:
— Como sei disso? Era para mim que perguntavam quem era aquele negrão sentado no canto do bar.
A trajetória do Garagem Hermética já havia sido contada em livro em A Fantástica Fábrica, de 2014, por um de seus criadores — Leo Felipe, que fundou o bar, em 1992, com Kudla (até 2002, a dupla dirigiu a casa, que encerrou atividades em definitivo em 2013). À época, o livro havia surpreendido pela crueza do relato, que não poupava o próprio autor nem os frequentadores (citados com nomes verdadeiros).
— Não quis fazer um retrato edificante ou heroico. Éramos jovens inconsequentes e irresponsáveis em alguma medida. Achei que as pessoas entenderiam que os fatos ali narrados pertenciam a um passado juvenil — diz Leo, que admite ter perdido algumas amizades.
Leo não ficou melindrado com as críticas ácidas de Padeiro, embora destaque a diversidade das manifestações culturais do Garagem, com acesso barato ou até gratuito — não apenas shows, mas também intervenções em paredes internas de artistas visuais como Claudia Barbisan e Eduardo Haesbaert, e projeções de filmes nos muros do pátio.
— O Garagem possuía uma permeabilidade que outras casas noturnas não apresentavam, mas também tínhamos limitações. Vozes como a de Padeiro devem ser ouvidas para que possamos compreender melhor não só a cena cultural, mas a sociedade em que vivemos — conclui Leo, hoje radicado em São Paulo, onde é curador do Pivô, espaço de arte experimental no emblemático Edifício Copan.