Ao lado da Praça Júlio inicia-se a Rua 24 de Outubro, com os cinamomos que emprestavam sombras nos dias quentes de verão e regalavam com seus frutos a munição perfeita aos bodoques da gurizada nos anos 1960. Logo em seguida, descortina-se à esquerda a pequena via sem saída, a Rua Jardim Cristofel. Na sua entrada, reinava um guapuruvu de imenso porte, tronco reto abrindo a copa bem no alto, que ficava coberto de flores amarelas no início da primavera. Adiante, a caixa d’água, cuja construção se iniciara em 1904 e fora concluída somente 24 anos depois pelo prefeito Alberto Bins, proprietário de um belo casarão na Rua Jardim Cristofel, que anos após cedeu lugar ao Edifício Cristofel. Mais adiante, vislumbrava-se o Jockey Club, no velho Hipódromo do Moinhos de Vento, onde atualmente fica o Parcão.
Na Rua 24 de Outubro, na calçada fronteira à Praça Júlio, até poucos dias havia um murinho feito de granito rosa, ponto de reunião da turma de adolescentes dos anos 1960. Nele sentados, não raro, por tardes e noites inteiras, entre jogar conversa fora e alguns chistes, caçoavam da paciência dos que por ali transitassem e lançavam gracinhas às adolescentes que ingenuamente ousassem cruzar pelo grupo.
Apenas uma menina que morava a poucos metros dali era intocável, fazendo jus ao adágio de que toda a donzela tem um pai que é uma fera. E o pai da moça, ligado à ditadura militar, era mesmo bem exasperado. Mas isso não impedia que ela seguisse pela rua com um suave e provocativo balanço dos quadris. Às vezes, passava na calçada oposta ao grupo, com seu ar sedutor, cabelos longos e castanhos — quase uma seda — que refletiam, nas tardes claras, as nuanças da luz do sol. Vestia o uniforme do Colégio Bom Conselho. A saia curta, acima do joelho, deixava à mostra a sensualidade das pernas bem delineadas, levando todos ao delírio. Era o enlevo da turma; por consenso, a diva da rua. Os olhares, sequiosos seguiam-na, em um silêncio quase sepulcral. A musa sabia que os encantava. Discretamente, retribuía olhares esperançosos à hoste do murinho. Para quem ela dirigia o seu olhar? Houve até quem, consumindo integralmente a encolhida mesada, lhe enviara um buquê de flores, certo de que cresceria aos olhos da ninfa.
Ao trazer à relembrança aquela época, tem-se a sensação de que os fatos ocorreram ontem, ou anteontem. No entanto, se vão quase 50 anos! Se, por um lado, alguns desses personagens mantêm até hoje permanente convívio, também é verdade que outros tantos desapareceram, levados pelo destino a caminhos incógnitos. Outros se foram para sempre.
Por onde andarão Fredes, Barbosinha, Jorge Alberto Rodrigues, Cláudio Brandt, Beto Vitola, Harley e Werner Dullius, Artur Poester, Osmar Ferreira de Souza, Carlitos Wolford e Luiz Augusto Fonseca.
Tanto tempo se passou do final dos anos 1960, começo de 1970! Quantos projetos na pedra gélida do murinho da Praça Júlio ou na roda de chope no bar Dom Jayme foram acalentados! Mas, sem que se perceba, a voragem implacável do tempo a todos comanda. Aquela época da Praça Júlio é indelével, especialmente quando, em algum lugar, alguns poucos desses amigos se encontram para confraternizar, rir muito e também embargar a voz e derramar uma incontida lágrima, pois hoje está tudo definitivamente mudado... A lancheria Rib’s cerrou as portas, o murinho foi derrubado para dar espaço a um estacionamento e a bela colegial do Bom Conselho, o encanto do grupo, por onde andará? Que ruas e calçadas sentirão o pisar dos saltos altos da hoje mulher madura e decidida? Quem sabe leia um dia esta crônica e se lembre da turma de rapazes que ficava em um murinho de pedra, fazendo alvoroço a segui-la com olhares sempre que passava por eles; quem sabe, ela também já nem lembre...
Crônica atualizada de Alírio Cássio Di Zabanetta Noronha (pseudônimo de Jorge Alberto Carriconde Vignoli), publicada no livro “A Praça Júlio de Castilhos e a Turma do Murinho” Editora G&W 2008
Colaboração de Sérgio Agra