Ricardo Chaves
“Noite de inverno em Porto Alegre; no relógio dos Correios, os ponteiros estão juntos, nas doze. Há sereno nas ruas e um frio úmido impregna a cidade. O Cinema Imperial acende as luzes da marquise e despeja a segunda sessão; Antonio Amabile, o conhecido Piratini do rádio porto-alegrense, levanta a gola do sobretudo e se dirige à Praça da Alfândega, onde está seu automóvel. Seu olhar vagabundo cai sobre um banco e sobre um homem ali sentado. Mais um passo e olha de novo. Lá está o sujeito sem nenhum agasalho, encolhido para se proteger do minuano. Mais um segundo e Piratini volta. Reconhecera o homem. Estende-lhe a mão num sorriso. O outro lhe faz cara alegre, mas não corresponde ao gesto. Piratini compreende e transforma o aperto de mão em uma pancadinha no ombro, enquanto lhe perscruta as mãos: ‘Que foi isso, Marques?’. ‘Paralisia... Foi por isso que deixei o violão... Não sabias?’. Depois, um silêncio constrangido seguido de um diálogo ainda mais constrangido. Aquela noite foi fria demais para a sensibilidade de Piratini. Quando amanheceu, ele já tinha a ideia.”