“Noite de inverno em Porto Alegre; no relógio dos Correios, os ponteiros estão juntos, nas doze. Há sereno nas ruas e um frio úmido impregna a cidade. O Cinema Imperial acende as luzes da marquise e despeja a segunda sessão; Antonio Amabile, o conhecido Piratini do rádio porto-alegrense, levanta a gola do sobretudo e se dirige à Praça da Alfândega, onde está seu automóvel. Seu olhar vagabundo cai sobre um banco e sobre um homem ali sentado. Mais um passo e olha de novo. Lá está o sujeito sem nenhum agasalho, encolhido para se proteger do minuano. Mais um segundo e Piratini volta. Reconhecera o homem. Estende-lhe a mão num sorriso. O outro lhe faz cara alegre, mas não corresponde ao gesto. Piratini compreende e transforma o aperto de mão em uma pancadinha no ombro, enquanto lhe perscruta as mãos: ‘Que foi isso, Marques?’. ‘Paralisia... Foi por isso que deixei o violão... Não sabias?’. Depois, um silêncio constrangido seguido de um diálogo ainda mais constrangido. Aquela noite foi fria demais para a sensibilidade de Piratini. Quando amanheceu, ele já tinha a ideia.”
Esse texto retrata o exato momento em que Piratini decide abraçar a causa dos artistas desprovidos de um futuro alentador, passando a travar sua luta pelo bem-estar dos artistas menos favorecidos pela vida. O lema “Lembra do que recebeste do artista na sua mocidade e dá-lhe o teu amparo na velhice” torna-se palavra de ordem em sua vida. Piratini (1906-1953) era muito popular e famoso, desde a segunda metade da década de 1930 e durante os anos 1940. Radialista, humorista, cineasta e compositor de sucesso, foi ele quem concebeu e liderou a intensa mobilização, com centenas de eventos e coletas de doações, em prol da Casa do Artista Riograndense, fundada no dia 23 de abril de 1949.
No próximo sábado, dia 29, às 15h, com um sarau na sede (Rua Anchieta, 280, bairro Glória, Capital), será lançado o livro Casa do Artista Riograndense – Memória Viva do Radioteatro em Porto Alegre (128 páginas, R$ 30), de autoria da museóloga e pesquisadora Carla Beatriz Menegaz, com financiamento do Fumproarte, da Secretaria Municipal da Cultura, que conta a história da instituição e de alguns dos personagens que ajudaram a tornar realidade o sonho de Piratini.
A entrada é franca, mas a CAR aceita doações de alimentos, produtos de higiene pessoal e limpeza doméstica, para contribuir com o bem-estar dos moradores. Uma das finalidades do projeto é gerar renda para a casa. Haverá, ainda, uma apresentação de radioteatro ao vivo pelos artistas que participaram da gravação do CD que faz parte da obra.
Para minha alegria e orgulho, o texto entre aspas, que abre a coluna de hoje, foi escrito, em 1952, pelo meu pai, o jornalista Hamilton Chaves (então um jovem repórter), e publicado na Revista do Globo número 562 sob o título “Crepúsculo dos deuses”. Mais informações pelo e-mail radioteatrocasadoartista@gmail.com