Nestes tempos duros de falta de combustíveis, principalmente para o transporte coletivo, é superoportuno resgatar este texto, repleto de carinho e de saudade pelos bondes elétricos (!) e por seus condutores, enviado pelo leitor Sérgio Agra.
"Meu amigo Sergio Luiz, ainda que visivelmente consternado – certamente pelo desprezo do prefeito –, presenteou-me com antigas e preciosas fotos da Companhia Carris, com seus encantadores bondes. A lembrança provocou-me igual melancolia, eis que vivemos inesquecíveis histórias nos ‘amarelinhos’.
‘Amigo é o que nos procura / Simplesmente por sentir, Prazer, descanso, ventura / Em nos ver e nos ouvir.’
Meleninha, missioneiro, parido sob os caprichos do Minuano e das intempéries que rasgavam as coxilhas, transformado homem ante os confrontos com os mistérios das noites de plenilúnio, que apenas as plagas de São Miguel poderiam gerar, não resistiu à emoção. O ex-motorneiro do bonde Gasômetro jamais imaginara que, 30 anos mais tarde, os dois moleques pingentes – um arquiteto, o outro advogado – encontrassem a casa simples, de adobe, na encosta do Morro da Embratel.
‘Aconselha-nos se erramos / Sem humilhar-nos, porém. E sempre que precisamos / Ao nosso encontro ele vem.’
O bonde invariavelmente estava atrasado. Isto pouco importava. Eram tempos outros, do LongPlay de vinil, da Bossa Nova, dos bailes da reitoria, das saias godê e do Glostora, com o qual Meleninha besuntava os longos cabelos. O condutor, então, compensava a demora imprimindo velocidade ao elétrico. Ele sempre cuidou para que seus dois passageiros chegassem a tempo na escola. O Colégio Farroupilha vivia seu derradeiro ano no velho casarão da Alberto Bins. Naquele dia, o primeiro período era de língua portuguesa; o dever, a poesia a ser declamada.
‘Tem muito dos nossos gostos / Das nossas opiniões. E se divergem os gostos / Concordam os corações.’
Meleninha apreciava as árias de Verdi e Puccini. Entoava-as para divertimento nosso. Idolatrava Enrico Caruso, a quem ouvia nos ‘bolachões’ de 78 RPM, na sua pequena vitrola. O motorneiro jurava que ainda viveria para assistir ao vivo a um grande tenor. O poema fluía ante nossos olhos e mentes.
‘Quando um dia, inesperada / Uma dor nos espezinha, Embora bem disfarçada / Num instante ele adivinha.’
O bonde, rangedor, voava sobre os trilhos. Meleninha entoava a ária Bella Figlia Dell’Amore, da ópera Rigoletto De repente, em plena Avenida Osvaldo Aranha, o estrondo! Labaredas dominaram a ‘caixa’ do acelerador e dos freios do elétrico. Instintivamente, Sergio Luiz e eu enveredamo-nos para a porta, a fim de saltarmos, mesmo com o bonde em movimento. No derradeiro instante, Meleninha puxou-nos pela gola da jaqueta do uniforme escolar, garantindo-nos:
– Este foguinho mixuruca eu acabo com um assoprão! – e pôs-se a abafar furiosamente as fagulhas com o seu quepe.
‘Com uma palavra breve / E sábia, realiza o encanto. Eis que já sentimos leve / O que nos pesava tanto...’
Alcides dos Santos, o Meleninha, trazia os olhos marejados quando se acomodou no automóvel de seus antigos passageiros rumo às Missões. Ele iria beijar o campo natal, estendido em suaves planuras e coxilhas.
‘Na hora difícil e indecisa / Em que descremos de nós...’
Sob a noite estrelada, no cenário das ruínas de São Miguel, ele comoveu-se ante a sublimidade do tenor Josep Carreras.
... ‘Só ele nos valoriza / Com sua calma e sua voz...’
... porque nenhum prefeito e seu despotismo irão derruir o que sempre guardou significado nos corações de cada passageiro...
Colaboração enviada pelo escritor e advogado Sérgio Agra