No dia 17 de novembro de 1978, o jornalista Luiz Cláudio Cunha, então repórter e diretor da sucursal da revista Veja em Porto Alegre, recebeu uma ligação anônima que mudaria não só sua vida, mas salvaria outras quatro e ajudaria a elucidar um dos períodos históricos mais turbulentos da América do Sul.
Motivado pela denúncia feita do outro lado da linha, o repórter Luiz Cláudio Cunha e o fotógrafo J.B. Scalco dirigiram-se até um apartamento onde dois ativistas uruguaios, Lilián Celiberti e Universindo Díaz (mais os dois filhos pequenos dela, Camilo e Francesca), acabavam de ser sequestrados por militares do país vizinho.
Ao trazerem o caso à tona em uma série de reportagens, provocaram a indignação da opinião pública, obrigando a ditadura uruguaia a manter vivos os sequestrados, e expuseram a cooperação entre os serviços secretos das ditaduras do Cone Sul, por meio da chamada Operação Condor. Passadas quatro décadas, Luiz Cláudio Cunha e Lilián Celiberti se reencontram nesta segunda-feira na capital gaúcha para participar de um painel que relembra o episódio.
O encontro integra a programação do evento O Sequestro dos Uruguaios em Porto Alegre: 40 anos Depois, que conta ainda com uma mostra, instalada no segundo andar do Memorial do Rio Grande do Sul (Rua 7 de Setembro, 1.020), que reúne 25 painéis com fotografias da época acompanhadas de textos, além da exposição de documentos do Arquivo Histórico do Estado e da exibição do documentário O Sequestro dos Uruguaios, 15 anos Depois, produzido pela RBS TV em 1993, com direção de João Guilherme Reis e reportagem e apresentação do próprio Luiz Cláudio Cunha.
– Nos momentos de intolerância e autoritarismo, é ainda mais crucial o exercício da livre manifestação do pensamento e a presença de uma imprensa sempre vigilante na defesa dos direitos e das liberdades. Relembrar o acontecimento, 40 anos depois, é relevante para mostrar às novas gerações que, cedo ou tarde, a mentira nunca sufoca a verdade e a ditadura não prevalece sobre a democracia. Resistir é preciso – diz Cunha.
Operação condor uniu cinco países na caça a opositores
À época, o sequestro dos uruguaios fez com que Porto Alegre entrasse na rota da Operação Condor – a aliança secreta criada em 1975 pelas ditaduras militares de Argentina, Chile, Brasil, Uruguai e Paraguai para caçar opositores além de suas fronteiras. Perseguidos pela ditadura militar do Uruguai, Lilián e Universindo tentavam se esconder em um apartamento da Rua Botafogo, no bairro Menino Deus, quando foram capturados por policiais gaúchos e agentes uruguaios que tiveram permissão para entrar no território brasileiro.
Não se imaginava que o sequestro era uma ação da aliança secreta, mas a sequência de eventos a seguir confirmou que sim. Ambos foram interrogados e torturados na Capital e, a seguir, levados ao Uruguai, onde escaparam da morte graças às denúncias sobre o caso feitas pela imprensa.
3 perguntas para Lilián Celiberti
O chamado “sequestro dos uruguaios” é uma história muito conhecida, principalmente aqui em Porto Alegre, cenário do episódio. Que tipo de reflexão você pretende trazer para a cidade neste evento?
Em primeiro lugar, quero enfatizar a importância do trabalho de memória realizado pelo Arquivo Histórico do RS. A memória não existe apenas uma vez. Ela é fruto de uma reflexão constante sobre o presente e nos interpela a pensar como enquadramos os sucessos do passado na realidade atual. Gostaria de expressar nosso reconhecimento ao que significou para nossas vidas, para a de meus filhos, para mim e para a de Universindo o trabalho dos jornalistas e o trabalho de cidadania da cidade de Porto Alegre, que possibilitou que nos mantivéssemos vivos. O resto das reflexões acontecerão durante o evento.
Nem todos os países latino-americanos que viveram ditaduras civil-militares ou militares possuem políticas de memória eficazes. Como você vê a maneira como o Brasil lida com esse passado?
Acredito que houve uma política de silenciamento do passado, que ocultou sistematicamente o papel das Forças Armadas no golpe e na manutenção da ditadura por muitos anos.
Em manifestações populares recentes no Brasil, apareceram algumas pessoas pedindo a volta do regime militar. A que você atribui esse fenômeno?
O silêncio sobre o passado, o desconhecimento sobre a repressão e sobre o controle autoritário de poder permitem criar um imaginário que atribui a uma ordem superior a capacidade de ordenar a sociedade. O sistema de corrupção no Brasil existiu como política de controle, do qual os militares foram os atores principais. Só o desconhecimento, o esquecimento e a falta de investigação é que tornaram possível construir esse mito.
Painel com Lilián Celiberti e Luiz Cláudio Cunha
Painel acontecerá nesta segunda-feira (12), às 18h no Memorial do Rio Grande do Sul, (Rua 7 de Setembro, 1,020, no Centro Histórico – no segundo andar (Sala Múltiplos Usos). Às 16h, antes do painel, será exibido o documentário Kollontai, Anotações de Resistência (Argentina, 2018), com direção e roteiro de Nicolás Méndez Casariego e durante o mês de novembro acontecerá uma exposição com imagens, documentos e textos, além da exibição do documentário O Sequestro dos Uruguaios, 15 anos Depois (1993, cedido pela RBSTV), com direção de João Guilherme Reis. A visitação vai até 2 de dezembro, de segunda a domingo, das 10 h às 20h30, no segundo andar do Memorial do RS (Sala Múltiplos Usos).