A professora Lilian Celiberti ficou conhecida em 1978, quando foi sequestrada junto com dois filhos pequenos por forças policiais uruguaias e brasileiras em solo gaúcho. Era uma ação da Operação Condor, que juntava secretamente forças militares das ditaduras do Cone Sul para trocar informações e prender militantes políticos nas nações vizinhas. Lilian é uruguaia e estava em Porto Alegre com um companheiro de militância e dois filhos de 3 e 8 anos. Os dois adultos foram torturados na capital gaúcha e levados para o Uruguai, onde permaneceram presos por cinco anos. Seu sequestro ganhou repercussão porque um jornalista e um fotógrafo descobriram e noticiaram o fato.
Hoje com 62 anos, Lilian é ativista de direitos humanos e percorre o mundo contando sua história. Nesta sexta-feira, ela esteve em Pelotas para um projeto chamado Memória e Reflexão, que a cada dois meses promove debates gratuitos e abertos ao público na Universidade Federal de Pelotas. Confira trechos de entrevista concedida para Zero Hora:
Zero Hora - A Comissão Nacional da Verdade no Brasil, que investiga crimes cometidos entre 1946 e 1988, perdeu um membro que entraria em conflitos com outros membros por divulgar muito material para a imprensa. Como a senhora vê isso e como ocorreu no seu país?
Lilian - No Uruguai, eu acho que em geral a Comissão da Verdade não ia revelando dados porque ainda tinham esperança de que os militares falassem, então a ideia de que não houvesse grande repercussão para que eles se sentissem a vontade de falar. Em segredo, se poderia investigar mais. Se você vai divulgando, eles podem se sentir acuados, queimar documentos, essas coisas.
ZH - Então, a senhora é a favor de que não se divulgue nada até o fim da investigação?
Lilian - Depende de quais coisas você vai divulgar. O importante é a mudança que aquelas informações causam na sociedade. Antes eu te expliquei o porquê de não liberar informação, a lógica por trás disso. Mas, de qualquer forma, eu não creio que os militares e os policiais falem a verdade nessas comissões, mesmo que seja secreto no começo. Eles fazem uma espécie de pacto de silêncio. Eu acho que seria melhor ir divulgando aos poucos, porque assim se faz com que a sociedade enxergue a ditadura não como algo pré-histórico, mas como história pós-moderna, que tem que ser lembrada.
ZH- A senhora deu depoimento para a Comissão da Verdade do Brasil?
Lilian - Sim. Neste ano, quando se instalou em Porto Alegre. Contei o que passou, as pessoas envolvidas e houve entrega de documentos das investigações dos jornalistas e do meu advogado, Omar Ferri.
ZH - A senhora espera alguma reparação do Estado com seu testemunho?
Lilian - Não tenho expectativa com relação a isso. Eu consegui reconstruir minha vida, não estou pendente de uma reparação moral. Meu caso é bem conhecido, foi publicado, mas agora há muitas situações em que isso não se deu, as pessoas não conseguiram denunciar, porque são situações menos conhecidas. A Comissão da Verdade é um primeiro passado, assim se sucedeu em Argentina, Chile e Uruguai. Um primeiro passo pra reconhecer os feitos e, a partir daí, abrir um caminho de memória que tem estado tapada, vedada e proibida pelo silêncio, pelo esquecimento e por uma prática institucional e política de não olhar o passado. Então, o feito de institucionalizar uma Comissão da Verdade é muito significativo, pois é um ataque direto à impunidade. Porém, o Brasil só está fazendo isso em 2013, quando a Argentina fez isso no primeiro ano de redemocratização.
ZH - Depois de cinco anos presa, como foi para você e sua família retomarem a vida?
Lilian - A Francisca ficou com meus pais no Uruguai e o Camilo voltou para Itália com o pai dele. Para ele foi mais difícil porque era maior (tinha oito anos), portanto tem mais presente o sequestro e o medo. E ainda nos separaram muito rápido, em um dia, e não me viu mais até que se passaram seis meses quando estabeleceram as visitas. Então, é muito difícil para uma criança entender o que está passando. De todos nós, foi o que teve um trauma maior, tanto que fazem dois anos que o convidaram para Porto Alegre em uns atos que fazem sempre no 31 de março, as pessoas do departamento de história da Universidade Federal organizaram uma mesa de debate de filhos, com os que viveram experiências traumáticas quando crianças. Esses filhos presenciaram a tortura de seus pais, viveram situações horríveis. Convidaram o Camilo e foi a primeira vez que falou em público, melhor dizendo: foi a primeira vez que falou em público e privado. Isso foi como abrir uma tampa de contenção e acho que foi muito saudável pra ele, verbalizar os traumas para poder seguir.