Enquanto muitos países ocidentais observam a redução da curva epidêmica do coronavírus, o Brasil caminha para se tornar, nas próximas semanas, o novo epicentro mundial da pandemia — uma nação com grande número de novas infecções e mortes, segundo dados coletados até as 12h de quinta-feira (30).
Neste domingo, o Brasil se tornou o 9º país com mais casos confirmados, com a 7ª posição em mortes. Atingimos 101.147 casos confirmados e 7.025 mil mortes — nos últimos dias, ultrapassamos o total de casos e de vítimas da China, onde vivem mais de 1,4 bilhão de pessoas. Nesta sexta, passamos o Irã e a Alemanha em total de óbitos.
O cenário vem piorando nos últimos dias e deve se deteriorar mais: neste momento, temos a maior taxa de contágio de covid-19 dentre 48 países analisados pelo Imperial College de Londres. Quanto maior o número, maior a velocidade de transmissão e o risco de lotação de hospitais.
Na segunda-feira (26), cada brasileiro infectado transmitia o vírus para 2,8 pessoas. Nos Estados Unidos, a taxa é de 0,98; no Reino Unido, de 0,72; na Alemanha, de 0,8 – nos três países, a curva está estabilizada.
Resultados do Imperial College são usados por governos do mundo todo para nortear decisões sobre relaxar ou não medidas de isolamento. No geral, autoridades decidem retomar serviços quando o índice é abaixo de 1.
A universidade inglesa viu que, além do Brasil, oito países têm curva epidêmica ascendente: Canadá, Índia, Irlanda, México, Paquistão, Peru, Polônia e Rússia.
O ministro da Saúde, Nelson Teich, admitiu na quinta-feira (30) que o país deve registrar mil novas mortes diárias nos próximos dias — ao menos 400 vítimas vêm sendo contabilizadas diariamente. Antes de deixar o cargo, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta afirmou que maio e junho seriam os meses “mais duros” da epidemia no Brasil.
— Para não ser epicentro, é preciso ter diagnóstico amplo da população, medidas de restrição, suporte hospitalar e padronização de medidas. O Brasil não tem nada disso. A situação ainda vai piorar muito, temos tudo para ser um epicentro, ainda mais tendo a maior taxa de contágio do mundo. Para piorar, existe subnotificação, o inverno está chegando, há uma massiva desinformação do público e as quarentenas estão sendo suspensas — afirma Paulo Brandão, professor de Virologia da Universidade de São Paulo (USP).
Outro dado que indica agravamento de cenário brasileiro é que, na terça-feira (28), o país foi a terceira nação com mais novas mortes registradas em um único dia, atrás apenas de Estados Unidos e Reino Unido, segundo dados da John Hopkins e do Worldometers, que produz estatísticas com base em fontes oficiais de cada país. No dia seguinte, o Brasil ficou em quarto lugar, atrás da Espanha, mas retomou o terceiro lugar nesta sexta-feira.
Agrava o cenário o fato de o Brasil testar apenas pacientes graves e profissionais da saúde com sintomas — o número real de casos, portanto, é muito maior. No Rio Grande do Sul, para cada confirmação de coronavírus há 12 pessoas não diagnosticadas, mostra pesquisa da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), que será expandida para o país inteiro. Outras nações têm políticas de testagem mais amplas, o que leva a estatísticas mais próximas da realidade.
Epidemiologistas pontuam que, como Brasil tem uma das maiores populações do mundo, com 210 milhões de habitantes, um grande número de vítimas já é esperado.
— A curva está em franca ascensão. Se seremos epicentro de casos? Sim, é possível que o Brasil, em determinado momento, seja o país que mais contribua com número de mortes diárias. Mas isso também pode acontecer porque as curvas dos países se dão em momento diferente. Depois, no futuro, outro país será o novo epicentro — avalia Jeruza Lavanholi Neyeloff, médica epidemiologista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
A tendência nacional de crescimento, entretanto, esconde realidades regionais: São Paulo, Amazonas, Rio de Janeiro, Ceará e Maranhão estão em situações mais delicadas, com vários hospitais quase lotados. Outras regiões, incluindo o Rio Grande do Sul, onde a curva foi achatada, estão mais confortáveis.
Não somos, até agora, Itália nem Espanha
Médicos destacam que a situação ficará grave, mas, ainda assim, não estamos na mesma dificuldade enfrentada por países como Itália ou Espanha considerando o estágio da epidemia. Até agora, o isolamento social reduziu a expansão do coronavírus, como mostra a análise da incidência da covid-19 de forma proporcional ao tamanho de cada nação levando-se em conta o número de dias após a confirmação da quinta morte.
Na quinta-feira, 42º dia após a confirmação do quinto óbito, o Brasil tem uma taxa de 26 mortes a cada 1 milhão de habitantes — menos do que, na mesma época, Estados Unidos (67,6), Espanha (417) e Itália (263), segundo análise de GaúchaZH sobre dados da manhã desta quinta-feira do European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC), como mostra o gráfico a seguir.
Em infecções, o país tem, 49 dias após o 50º caso confirmado, 372 infecções/1 milhão de habitantes, bem menos do que, no mesmo período, Itália (2.442/1 milhão de habitantes), Espanha (4.066/1 milhão de habitantes), Estados Unidos (1.704/1 milhão de habitantes) e Alemanha (1.614/1 milhão de habitantes), como indica o gráfico abaixo.
Mas essa fotografia do momento traz resultados colhidos graças às medidas de distanciamento. Alguns Estados seguirão com restrições até metade de maio, como Amazonas, Maranhão e Rio de Janeiro, mas várias regiões, incluindo o Rio Grande do Sul, começam a retomar os serviços nos próximos dias.
— Embora venhamos a ser o epicentro da pandemia, o isolamento está funcionando, porque espalhamos os casos ao longo do tempo. Ao olharmos a taxa de óbitos pela população, o Brasil fica entre os países que fizeram isolamento social de maneira mais precoce. No ponto da epidemia em que estamos, não somos Itália nem Espanha. Mas, para isso, precisamos manter o isolamento. O relaxamento certamente acelera a epidemia — pontua Anaclaudia Fassa, médica e professora de Epidemiologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e integrante do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Para Fabiano Ramos, chefe do setor de Infectologia do Hospital São Lucas da PUCRS, o Brasil não deve repetir o cenário espanhol ou italiano porque teve tempo para preparar os serviços de saúde e comprar exames. Porém, em locais onde o distanciamento foi menor, como Manaus, Recife e certas regiões do Rio de Janeiro e de São Paulo, a superlotação de serviços e o número maior de mortes é previsível, diz.
— Em Porto Alegre, por exemplo, temos mais diagnóstico do que antes. Obviamente não é o ideal, mas conseguimos fazer mais testes. Hoje, temos uma estrutura melhor, com mais máscaras, protetor facial e aventais, também com apoio de empresas. E, obviamente, o isolamento social fez com que outras doenças que envolvem aglomerações não ocupassem leitos de CTI. Mas é possível que tenhamos uma nova onda de casos com o afrouxamento de medidas — declara o médico infectologista.
A grande preocupação do Rio Grande do Sul é o inverno, destaca Marinel Mor Dall'Agnol, médica epidemiologista e professora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Ela avalia como precipitada a retomada de atividades no Estado.
— No inverno, as pessoas ficam aglomeradas e em locais fechados. O uso de máscara e a higiene respiratória não são suficientes em uma pandemia deste tipo, porque as pessoas não usam proteção adequadamente, não trocam máscara de duas em duas horas. Temos que ter distanciamento social — avalia.
Na sexta-feira (1º), o uso de máscaras em ônibus, táxis e aplicativos de transporte passou a ser obrigatório em todo o Rio Grande do Sul. O novo modelo de distanciamento social deve vigorar a partir das próximas semanas.