A chegada da covid-19 não provocou uma elevação significativa nos níveis gerais de mortalidade no Rio Grande do Sul até o momento, conforme dados de óbitos registrados em cartório.
A Secretaria Estadual da Saúde (SES) chegou a identificar um salto de 602% nas mortes atribuídas à síndrome respiratória aguda grave (SRAG) em relação ao ano passado, mas esse fenômeno não foi acompanhado por um aumento real no número total de óbitos registrados ou na soma de todos os problemas respiratórios. Ainda assim, especialistas consideram possível que a disparada nos relatos de SRAG esconda algum grau de subnotificação de doentes com coronavírus por limitações envolvendo a realização dos testes.
Conforme a Central Nacional de Informações do Registro Civil, desde a indicação do primeiro caso de covid-19 no Estado, em 29 de fevereiro, até 17 de abril morreram 9.749 pessoas no Rio Grande do Sul. Isso representa uma situação estável em comparação com o mesmo período de 2019, com uma variação de 0,2%.
Quando se analisam somente as mortes relacionadas a alguma causa respiratória (covid-19, SRAG, pneumonia ou insuficiência respiratória), o crescimento foi de 1,7%. Houve 2.561 registros no ano passado contra 2.605 agora, ou 44 vítimas a mais. O levantamento é limitado ao dia 17 para contar com dados mais consolidados, já que os prazos legais permitem até duas semanas para um óbito ser incluído na plataforma digital do Registro Civil.
Pela contabilidade dos cartórios, a variação nas mortes por SRAG foi de 262%. A cifra é diferente da apresentada pela SES porque os períodos não coincidem, e a secretaria se baseia em informes repassados pelas vigilâncias sanitárias dos municípios. A plataforma do Registro Civil utiliza uma metodologia própria para identificar a causa principal do óbito (que pode envolver mais de uma razão).
Conforme a SES, houve 260 vítimas com sintomas da síndrome até 18 de abril (contra 37 no ano passado). Todas foram examinadas, mas apenas 25 testaram positivo para coronavírus. A secretaria atribui a disparada nas notificações em grau superior ao impacto oficial da pandemia a um maior alerta entre os profissionais de saúde para documentá-la e descarta uma subnotificação de covid-19 como se suspeita em outras partes do Brasil.
Os dados do Registro Civil sugerem ser pouco provável que o aumento nos casos de síndrome respiratória esconda uma grande subnotificação de covid-19 no Estado, já que o total de mortes por razões similares ficou muito pouco acima do ano passado. Mas especialistas afirmam que pode, sim, haver algum grau de ocorrências não identificadas de coronavírus entre a atual cifra de vítimas de SRAG.
— Muitas vezes, o resultado negativo, mas continuamos achando o quadro (de pacientes) compatível com coronavírus. O PCR (nome do teste) dar negativo não significa que o paciente não tenha covid-19. Acredito que isso tenha alguma associação com o crescimento de SRAG. Pode ser covid não diagnosticada — avalia o chefe do Serviço de Infectologia do Hospital de Clínicas, um dos centros de referência para a pandemia na Capital, Eduardo Sprinz.
Eficiência do exame para coronavírus é variável
Diversos fatores podem reduzir a eficácia do exame destinado a detectar o coronavírus e levar a uma subnotificação involuntária. Uma das razões para isso, conforme o infectologista Eduardo Sprinz, é que o teste “depende do operador” e está sujeito a questões como a correta técnica de coleta. Outros pontos a serem considerados são o período e a sensibilidade da testagem.
— Temos percebido que, quando o exame é coletado em alguns momentos mais tardios ou precoces, como entre o terceiro e o quinto dia após o início dos sintomas, por exemplo, o resultado tende a ser mais negativo do que positivo. É um território que ainda não conhecemos muito bem — complementa Sprinz.
A confiabilidade da testagem depende ainda do material analisado. Uma nota técnica da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas divulgada em 27 de março alerta que “fatores como coleta inadequada da amostra, tipo de amostra biológica, tempo decorrido entre a coleta e o início dos sintomas e a oscilação da carga viral podem influenciar o resultado do exame”.
Um estudo que avaliou 1.070 amostras de 250 pacientes na China, publicado em 11 de março, esclarece um pouco mais essa questão. A eficiência do chamado PCR varia de 93% quando é coletado material do pulmão para 72% do escarro, 63% da região da orofaringe (via nasal) e 32% das fezes. O desempenho cai para 1% quando se analisa o sangue, e 0% no caso da urina.
GaúchaZH solicitou uma entrevista à SES, mas a secretaria se manifestou somente por meio de nota e da assessoria de comunicação. Conforme o governo estadual, o padrão no Estado é coletar material da orofaringe através do nariz. Quando o paciente já está entubado, é feito o procedimento mais invasivo (e preciso) — uma aspiração que também capta material pulmonar.
O exame costuma ser feito na admissão hospitalar do paciente. A SES também esclarece que “caso o óbito (...) venha a ocorrer antes do diagnóstico laboratorial, a orientação é para que as certidões de óbito tenham a informação de suspeita de covid-19, mesmo que associada a outras causas (...).”.
Membro da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib), Cristiano Franke acredita que as diferentes hipóteses possam estar contribuindo juntas para o aumento verificado nas notificações de morte por SRAG.
— Hoje, toda a nossa atenção (dos médicos que preenchem a declaração de óbito) está voltada para a pandemia, então isso pode evitar que se gere uma notificação para outra doença também envolvida (como causa da morte) e aumentar a notificação para SRAG. Podemos também estar com mais doenças respiratórias de outros tipos, e outra parte pode ser explicada pelo fato de o teste não ter uma sensibilidade de 100% — analisa Franke.
Como a prioridade do Estado hoje é realizar os exames para coronavírus, materiais das vítimas de SRAG que testaram negativo para a covid-19 serão novamente analisadas em busca de outros vírus apenas mais tarde.
Trecho da nota técnica da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas
“Por fim, um estudo publicado com uma série de casos demonstrou que a carga viral de pacientes nos quais foram realizadas múltiplas coletas de swab de orofaringe e nasofaringe oscila ao longo do tempo. Um mesmo paciente pode apresentar o vírus detectado na amostra coletada em um dia e não detectado em amostra coletada em outro dia. Portanto, eventualmente a coleta de múltiplas amostras, de locais e tempo diferentes durante a evolução da doença, pode ser necessária para o diagnóstico da covid-19.”