De seu gabinete, no número 10 da Downing Street, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson faz ligações diárias urgentes para o líder ucraniano, Volodymyr Zelensky. Ali ao lado, as autoridades do Ministério das Relações Exteriores e da Comunidade das Nações definem novas sanções contra os oligarcas russos que transformaram Londres em um refúgio imediato, esconderijo para seus bens e abrigo para seus parentes.
De frente para o Palácio de Whitehall, porém, uma incorporadora bilionária está dando os toques finais na conversão extravagante do Old War Office, ou a antiga sede do Departamento de Guerra, monumento eduardiano ao passado imperial britânico. Ali funcionará o Raffles Hotel, cinco estrelas com apartamentos residenciais de luxo que até recentemente teria atendido os mesmos ricaços russos que caíram em desgraça.
– Há cerca de um mês e meio fomos procurados por vários, mas o interesse não se materializou. Certamente, eles responderiam por um segmento significativo, mas por razões óbvias acabaram ausentes. O que não deixa de ser um ponto positivo – comenta Charlie Walsh, diretor de vendas residenciais do projeto do Grupo Hinduja, conglomerado anglo-indiano controlado pelos irmãos que lhe dão nome e que está envolvido nos setores da manufatura automotiva, petróleo e gás e assistência médica.
Prestes a ser inaugurado em tempos de guerra na Europa, o OWO – como o Old War Office foi rebatizado – é um lembrete da história bélica britânica. Mas Walsh, nas suas negociações com uma clientela bilionária, procura não enfatizar o tema da guerra. Prefere relembrar as figuras famosas que trabalharam no prédio, incluindo Winston Churchill e T.E. Lawrence, o Lawrence da Arábia.
Em tom de confidência, conta que John Profumo, então secretário de Estado da Guerra, no início da década de 1960 recebia sua amante de 19 anos, Christine Keeler, em seu escritório forrado de painéis de madeira, que aliás será o cômodo de destaque de uma das suítes do hotel. O relacionamento dos dois veio à tona no “caso Profumo”, depois que se descobriu que a moça também mantinha um relacionamento sexual com um adido soviético.
Ian Fleming circulou por ali durante o tempo em que foi agente da Inteligência Naval. Walsh sugere que o escritor se inspirou nesse período para compor seu personagem mais célebre, James Bond. E mostra ao visitante a “Entrada dos Espiões”, assim chamada por ficar discretamente escondida na parte de trás do edifício.
Vários filmes do agente 007 usaram o Old War Office como pano de fundo, com destaque para o fim de Operação Skyfall (2012), quando um Daniel Craig taciturno olha para seus torreões do topo de um prédio vizinho – com o Big Ben a distância, emoldurado pelas bandeiras britânicas esvoaçando ao vento. “Detesto perder essa vista”, lamenta Bond, cujas palavras a incorporadora levou a sério.
Inauguração prevista para o fim do ano ou início de 2023
O que não falta no OWO são cenários de tirar o fôlego, com suítes dando para a Horse Guards Parade, do outro lado da rua, ou para o Parlamento, mais ao sul. Há um champagne bar de três andares e um restaurante com telhado de vidro. Dois apartamentos de cobertura têm quartos montados entre os torreões.
Mas todo esse esplendor – que inclui lareiras de mármore com detalhes intrincados e os mosaicos do piso original – não sai barato. O preço mínimo dos 85 apartamentos é equivalente a US$ 7,6 milhões e pode chegar a US$ 132 milhões. Walsh já vendeu cerca de 25% das unidades e aposta que chegará à metade por ocasião da inauguração – ou seja, no fim deste ano ou no início de 2023.
Mas a guerra na Ucrânia e a mancha do dinheiro sujo russo não são os maiores desafios da comercialização desses apartamentos nababescos, e sim as restrições de viagem recorrentes da pandemia, que dificultam as visitas de compradores em potencial, normalmente asiáticos ou médio-orientais. Como resultado, várias das vendas iniciais concluídas por Walsh foram para europeus e norte-americanos:
– É bem provável que o aumento nos preços do petróleo ajude a aquecer o mercado para os interessados nos países do Golfo.
Embora não explicite, Walsh está obviamente aliviado com o fato de os russos terem sido deixados de lado. A ameaça das sanções, que pode levar ao congelamento de seus bens, vai poupá-lo de uma escolha difícil. Mas ele garante:
– As normas mais rígidas de identificação do cliente instauradas nos últimos anos tornaram praticamente impossível a presença de dinheiro sujo nesses projetos.
Essa opinião parece um tanto otimista: a organização Transparência Internacional, que faz campanha contra a corrupção, calcula que US$ 8,8 bilhões de fundos estrangeiros de origem duvidosa foram injetados no setor imobiliário britânico desde 2016. Uma nova lei pretende dificultar a vida dos estrangeiros ricos que queiram mascarar a posse de imóveis ou usá-los para lavar dinheiro.
Para os críticos, a aquisição privada de prédios públicos foi longe demais
O Old War Office, concluído em 1906, não é o único monumento da cidade a ser convertido em hotel de luxo: o Admiralty Arch, localizado entre Trafalgar Square e The Mall, está sendo transformado em uma filial do Waldorf Astoria. A antiga embaixada dos EUA em Grosvenor Square, clássica construção modernista de meados do século 20 projetada por Eero Saarinen, está sendo transformada em mais um Rosewood Hotel.
Para os críticos, a aquisição privada de prédios públicos foi longe demais, principalmente no caso do Admiralty Arch, edifício majestoso que há anos não passa de um canteiro de obras bloqueando a vista do Palácio de Buckingham.
– É um verdadeiro escândalo. Deveriam pôr as agências do governo ali. Depois só falta tomarem conta de Downing Street – esbraveja Simon Jenkins, colunista do jornal The Guardian e autor de A Short History of London.
Seria difícil imaginar a transformação de prédios públicos famosos em hotéis ou apartamentos exclusivos em uma cidade como Paris. Mas em Londres, diz Tony Travers, especialista em questões urbanas da London School of Economics, há uma “visão desapaixonada”:
– O Reino Unido, que em vários aspectos é muito tradicional, em outros sabe ser bem inovador. Há uma disposição de rejeitar a tradição quando isso é visto como uma necessidade pragmática. É pouco provável que um governo em dificuldades fiscais, por exemplo, cuide tão bem desses edifícios como o proprietário particular. O Palácio de Westminster está em um estado perigoso de deterioração, com pedaços de alvenaria caindo das paredes, enquanto o Parlamento briga para aprovar uma reforma que vai levar décadas para ser concluída e custará mais de US$ 20 bilhões.
O Ministério da Defesa, que se mudou para um espaço maior em 1964, vendeu o direito de aluguel da sede antiga por US$ 460 milhões em 2016, e o Grupo Hinduja já investiu ali mais de US$ 1,3 bilhão, com 1,2 mil operários no local.
– É um projeto que exige um capital altíssimo – confirma Walsh. – Mas, sem investimento privado, esses prédios seriam simplesmente esquecidos e abandonados à própria sorte até sumirem.